Temas e Controvérsias

A FELICIDADE COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO

(Algumas reflexões sobre o trabalho "Felicidade, Uma Revisão", Rev. Psiq Clin 2007)

A felicidade está na moda. Há poucos dias, o gov. chinês decretou, como política prioritária, fazer com que seu povo se sinta feliz. Se tudo dependesse de um decreto, a vida seria bem mais simples, mas, certamente, muito menos interessante! Alguns colegas até ousaram defini-la no artigo que vamos discutir: “a felicidade é uma emoção básica caracterizada por um estado emocional positivo, com sentimentos de bem estar e prazer, associados à percepção de sucesso e à compreensão coerente e lúcida do mundo”. Deixando de lado as tautologias que se podem encontrar no texto, sua investigação não deixou de ser interessante.

Daquela definição, mas também de uma certa PSICOLOGIA POSITIVA—que a sustenta—deriva, de imediato, um grave problema conceitual: a felicidade dependeria apenas, ou principalmente, de nossas atitudes e/ou disposições básicas². Há nisso uma soberba que até os não religiosos podem identificar. Perguntamos: uma pessoa que perca seus familiares em um acidente de avião (ou seja, sem qualquer “contribuição” das próprias pessoas para o acontecimento), por mais que tenha sido, até então, considerada feliz e a caminho da realização, dirá, algum dia, ter tido uma vida feliz? Dificilmente. Guardemo-nos, então, de falar em “felicidade” e procuremos por expressões um pouco mais específicas, como: sensação de bem estar em relação a si mesmodisposição positiva em relação à vida, ou outra. Deixemos a felicidade para as observações infantis: “Eu era feliz e não sabia” (Ataulpho Alves).

O mesmo se pode dizer em relação à lucidez ali apregoada. Diríamos até o contrário: é necessária uma certa dose de alienação para se dizer feliz em um mundo tão injusto. Mais adiante, seria essencial, nessa expressão de “felicidade”, um olhar otimista para a vida, associada à verbalização de frases como “A humanidade está evidentemente evoluindo para melhor!”. Perguntamos: há alguma lucidez nisso, ou apenas uma crença? Admitamos: é uma boa crença, desde que não provoque a alienação de que essa “melhora” independeria da nossa atitude em relação à humanidade. Sem isso, essa crença seria uma espécie de “fatalismo do bem”! Além disso, esse tipo de apregoamento de “grande lucidez” IMPLICA uma autoavaliação não muito modesta e faz-nos lembrar Descartes: “o bom senso é a coisa melhor distribuída da natureza. Todos acham que dele foram muito bem dotados”. O que dizer, então, do pouco cuidado de um dos inspiradores da psicologia positiva (Cloninger)—em seu capítulo sobre Transt. da Personalidade (Kaplan/Sadock, oitava edição)—ao afirmar que as melhores pessoas para os tratar seriam aquelas com: baixo narcisismo, alta energia e alta tolerância (“I myself, of course”)?

Reportando esse sentimento de felicidade entre diferentes povos, seria ele até doze vêzes mais referido entre os dinamarqueses do que entre os portugueses. Quando, porém, pareamos esses dados com o fato de os dinamarqueses se suicidarem até duas vêzes mais do que os portugueses, gera-se, no mínimo, um aparente paradoxo. Todo paradoxo espelha apenas a estreiteza dos nossos julgamentos. Há, certamente, uma tolerância maior, entre os portugueses, para lidar com as referências de infelicidade por parte dos demais. Um certo culto à felicidade, acaba se tornando um “não me fale das suas dores”; uma espécie de “patrulha contra as lamentações”. Há, em toda essa discussão, um viés de não acolhimento muito perigoso. Sem espaço para que se falem nas próprias dores, elevar-se-ia uma certa taxa de “atuação”, trágica, no caso. A observação de um outro aparente paradoxo pode auxiliar no entendimento do fenômeno: os índices de suicídio elevam-se—nos países do HNorte—no início da primavera. Poderia, a nova estação, agravar no suicida em potencial a sensação de contraste em relação à situação dos demais membros de sua comunidade? Há tanta arrogância na felicidade propagandeada! Sem contar que, para um contingente não desprezível de “felizes”, a humilhação dos infelizes parece ser uma condição para que se sintam “bem”.

Foi, efetivamente, Sócrates o primeiro a associar o bem estar à virtude e esta aos esforços da Razão humana. Aqui, sua grandeza e sua limitação³! Os esforços muito racionais estão longe de garantir um caminho para a virtude. A ironia, nesse caso, é sua referência permanente a um “demônio” que ouvia e obedecia, especialmente em situações extremas, e que sempre o protegia. Era uma intuição nada racional. Na prisão, esse mesmo “demônio” lhe ordenou ao pé do ouvido: “Sócrates…estude música!” (a menos “racional” de todas as artes). Sua última frase teria sido: “Devo um galo a Asclépio” (em agradecimento ao deus da medicina): a morte lhe parecia um “tratamento” contra uma vida sentida como doentia, nos últimos anos, pelo menos.
A árvore da vida não é a mesma árvore da Razão”  Lord Byron.

Por fim, estamos convencidos de que esse culto ao “confesse que está feliz” vem funcionando como instrumento ideológico de promoção do conformismo. Deixando de lado a “felicidade”, a questão principal parece ser a procura por estar bem consigo e isso não há de ser algo meramente individual. Somos, antes de tudo, seres sociais. O instinto gregário parece ser mais forte até do que o de sobrevivência, e aquele bem estar depende da sensação de pertencimento a uma cultura e da luta pela sua preservação e enriquecimento.

¹”…emoção básica caracterizada por estado emocional…” e, ainda, palavras como sentimento, bem estar e prazer que, por sua vez, necessitariam de definição. Ver também: “O QUE SE PODE E O QUE NÃO SE PODE DEFINIR NA ATIVIDADE MENTAL”

²Como é exposto no próprio artigo, haveria uma disposição básica, em algumas pessoas, propiciando que mantenham um olhar positivo para vida, mesmo depois de se terem tornado tetraplégicas. Não gostamos, porém, de chamar esse sentimento de “felicidade”.

³Como Nietzsche antecipou e Freud demonstrou, não é por um mero convencimento racional que as pessoas mudam. Há que atingir camadas mais profundas da sua personalidade.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ