Temas e Controvérsias

ABEAD: AFIRMAÇÕES NÃO FUNDAMENTADAS E CONCLUSÕES PRECIPITADAS

Dentre as atitudes esperadas entre as pessoas ligadas à ciência–até porque se tornam como que “cacoetes”–estão o evitar tirar conclusões precipitadas (especialmente de relações de causa e efeito) e o esforço de bem fundamentar suas teses e hipóteses. Sem elas, como vamos nos diferenciar de pregadores religiosos e de políticos? Não as encontramos nas afirmações do presidente da Ass. Bras. de Estudo do Álcool e Drogas (no programa “Roda Viva”-22/8/11-e em seus artigos). É o que vamos tentar demonstrar.
1-“As mães não têm nada a ver com o problema do uso de drogas. A solução está no exercício do papel de pai!“.
Acredite se quiser! Apesar de se intitular psicanalista, ele decidiu diminuir o papel das mães. Pensam que isso foi para protegê-las? Para muitas, que tanto sofrem com sentimento de culpa e impotência, essas palavras devem soar como um bálsamo ou uma anestesia. Para nós soa: “Isso é um assunto para homens!”. É o que discutiremos mais abaixo.
2-“Os jovens, até os 21 anos, não têm ‘cérebro’ para decidir quanto à ingesta ou não de álcool.”
Há arrogância no achar que nossas afirmações impôem-se por si mesmas, desobrigando-nos da fundamentação. Os legisladores não têm como escapar de alguma arbitrariedade na fixação de idades para a cobrança de responsabilidades, assim como, entre nós, os elaboradores de critérios para seleção de pacientes em pesquisas. Dos clínicos e pesquisadores, porém, é esperada atitude bem diferente. Além disso, um grande número de jovens sofre de um excesso de inibição (ou de “cérebro”). Tantos são aqueles com perfil “Harm Avoidant” (os que evitam riscos de sofrimento, em geral)! Não foram muitas as vezes que os jovens ocuparam a “Praça Tahrir”. Ficamos imaginando, aliás, o ex-ditador egípcio a eles se dirigindo: “Vão para casa! Vocês não têm ‘cérebro’ para estar aqui; não têm condições de freiar os seus impulsos“. Para muitos casos, complementaríamos: “Ainda bem!”. Não foi por acaso que o pres. da ABEAD, fez um chamamento ao “Paisão-Estado“¹ e que um dos maiores divulgadores dos trabalhos daquela Associação é um grupo religioso denominado “GUIEME“.
AS PRECIPITADAS RELAÇÕES DE CAUSA E EFEITO
1– Da constatação de que os usuários crônicos de maconha apresentam um pior desempenho em testes psicológicos (comparados aos não usuários na mesma faixa etária) concluíram ser a maconha a causa específica dessa deficiência. Não levaram em conta a variável relacionada ao tipo de personalidade prévia. Apesar de a primeira hipótese ser bastante razoável, é fácil constatar haver um tipo preferencial de traços de personalidade (com hipobulia marcante) associado à elevação do risco de se tornar usuário crônico. É de bom tom, entre cientistas e em pesquisas, tentar controlar todas as variáveis. Quando impossível, deve-se fazer a ressalva e relativizar as conclusões.
2– Da observação de que o início mais precoce do consumo de álcool se associa a um maior risco para abuso futuro, como que reificaram o dado e fizeram do “adiamento do primeiro gole” seu esforço principal. Vimos uma família sueca, que sempre desfrutou do vinho sem maiores problemas—daquelas que guardam centenas de rolhas em um belo vaso transparente—depois de ser bombardeada com esse discurso, traçar estratégias um tanto tolas para adiar o “primeiro gole” dos filhos. Eles já o tinham tomado havia muito tempo. Como é perigoso esse estímulo à hipocrisia!
3– Da observação (um tanto óbvia) de que o álcool teria sido a primeira droga utilizada em usuários de todas as outras, concluíram que o adiamento ou impedimento do uso inicial do álcool, teria grandes repercussões no uso de outras drogas, como se o álcool fosse uma “entrada de zipper” ou a ventosa de uma “larva”: se cortada, a “fixação” das outras substâncias não aconteceria. As advertências para os perigos do uso precoce de álcool são boas e necessárias. Relações simplistas, porém, devem ser evitadas.

Em linguagem que mais se parecia com a de fundamentalistas religiosos, chamou de FILICÍDIO a promoção de festas familiares (de 15 anos) nas quais os jovens provam algum álcool. . Aliás, muitos desses, que se dizem cristãos, esquecem-se de que o primeiro milagre de Cristo teria sido a transformação de água em vinho em uma festa de casamento. Além disso, em um dos momentos mais importantes do culto cristão (a comunhão) é também servido o vinho a todos os que acorrem ao altar.

Onde estão, por falar nisso, os velhos e bons trabalhos das décadas de 1960/70, demonstrando ser a HIPOCRISIA, nas sociedades e nas famílias, o principal fator para o surgimento, mais ou menos tardio, do abuso e dependência do álcool? Por que ninguém mais fala das baixas taxas de abuso entre os judeus e sua associação com o uso ritual inicial nas famílias? E os trabalhos demonstrando ser o problema do alcoolismo muito menor entre os italianos do que entre os franceses, onde há um culto sutil e refinado à hipocrisia? Os mamíferos são, antes de tudo, imitadores. Há muita hipocrisia em beber, saborear, “glamourizar” e, ao mesmo tempo, falar mal do álcool, em geral e para os filhos. A lei deve ser cumprida, mas há uma tolice indisfarçável em dizer a nossos filhos: “A partir de hoje, você pode provar do álcool”. Os jovens continuarão a procurar por ele, fora da família.

Antes de ditar regras, há que tentar entender as razões que levam as pessoas ao uso de substâncias. Há que ter até algum respeito para com essas substâncias, usadas desde os primórdios da humanidade em rituais solenes e sagrados: o tabaco (no cachimbo da paz), o vinho (nas festas de Dionísio e cristães), o ópio, as folhas de coca e assim por diante. O grande problema foi, mais uma vez, a avidez pelo lucro: a fabricação massiva e o estímulo ao uso banal e diário. Qual a importância dessa observação? Quem sabe se, no estímulo ao retorno ao uso somente em situações especiais e de congraçamento—isso sim, seria uma verdadeira educação—esteja a chave para evitar abusos. C. Baudelaire, com seu típico lirismo, louvou o quanto o vinho ajudava os mineiros, e outros trabalhadores, a se reencontrarem com sua própria alma, deixada no fundo das minas ou na mecanização do trabalho, a partir da revolução industrial e daquela mesma avidez pelo lucro:
Pois sinto uma alegria imensa quando desço/Pela goela de quem ao trabalho se entrega/…Hei de acender-te o olhar à esposa embevecida/A teu filho farei voltar as forças e as cores…” (“A Alma do Vinho”)

Antes de terminar, voltemos à exclusão das mães na determinação do abuso e abordagem do uso de substâncias. A mensagem é clara: nada de carinho ou aconchego; apenas autoridade e dureza. Quem disse que as mulheres são incapazes de autoridade e até de alguma dureza? Há nisso um discurso machista indisfarçável. Não por acaso, esses grupos têm atacado a grande revolução cultural dos anos 1960/70. Foi essa geração, um tanto “maldita”¹ (dos que eram jovens na época), que promoveu talvez a maior libertação das mulheres, elemento essencial em qualquer revolução cultural e de costumes. Não nos enganemos, sob esse discurso, que faz apologia do “Paisão-Estado” e do papel do pai, há um esforço de fazer das mulheres apenas novas “rainhas do lar”². Fazendo algumas contas, vemos que o pres. da ABEAD era um jovem nos anos 1970. Houve mesmo muitos que ficaram à margem daqueles grandes acontecimentos.

O sonho acabou/ Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou/…Foi pesado o sono prá quem não sonhou” (G. Gil, “O Sonho Acabou”)¹Chamada, hoje, por sociólogos conservadores, de geração “X”, numa alusão a “geração problema”. Resta saber: problema para quem? Certamente para aqueles que tentam transformar as sociedades em “rebanhos de ovelhas consumistas”.

²Há aqui mais uma alienação. Não sabem que o número de famílias chefiadas por mulheres é, não só enorme, como crescente? Se condicionam o sucesso a esse fator, estão, por antecipação, prevendo o fracasso inevitável. A não ser que o “Paisão Estado” faça todo o papel.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ