Temas e Controvérsias

ALUCINAÇÃO PSÍQUICA; APERCEPTIVA OU PSEUDOALUCINAÇÃO?

O esforço mais atual e necessário em relação à PSICOPATOLOGIA, há de ser uma espécie de “limpeza do campo”, jogando para a história inúmeras expressões criadas (sem muito critério) no curso de muitas décadas. Que profissional da área deixou de ser, a princípio pelo menos, quase esmagado pela miríade de termos e expressões pouco claras, relacionadas a fenômenos mal definidos em psicopatologia? Com o passar do tempo, deixamo-nos por eles envolver, e perdemos aquele bom estranhamento inicial. Novos termos e expressões deveriam ser tratados por nós como a natureza trata as mutações: somente algumas poucas, aquelas que trazem utilidade, merecem ser preservadas. Qualquer atitude diferente deve ser tratada como expressão de vaidade e erudição vazia.

No caso da PSICOPATOLOGIA, esse exagero certamente se deve ao fato de que, por mais de um século, não dispusemos de meios terapêuticos efetivos, ou fontes de conhecimento acerca da fisiopatologia subjacente, epidemiologia e outras. Dessa forma, tudo quase que se resumiu, por décadas, ao simples esmero de avaliação (no melhor dos casos) ou lucubrações que se perdiam em um “filosofês” interminável.

O FENÔMENO (sofrido e) DESCRITO POR KANDINSKY

Uma falsa percepção que compartilhava características das:

1-REPRESENTAÇÕES (ou imagens mentais, como se dizia à época)- ausência de corporeidade; ausência de um espaço externo de objetivação, manutenção da crítica pelo paciente, podendo ser várias ao mesmo tempo e sem relação umas com as outras (e outras variantes destas)

2-PERCEPÇÕES REAIS-independência da vontade, estabilidade, nitidez de cores e de contornos (mais intensos até do que as percepções normais em alguns casos. ver “La Psicosis del Psiquiatra”, Kokulina, E. e Angosto, T.).

Esse fenômeno foi por ele denominado PSEUDO-ALUCINAÇÃO. Infelizmente, a grande esquecida, nos estudos que se seguiram, foi exatamente a imensa capacidade dos seres humanos paraREPRESENTAR. Toda a ênfase foi dada à sua aproximação e diferenciação em relação ao fenômeno extremo (as ALUCINAÇÕES), quando havia um campo enorme de estudo das suas diferenças em relação às REPRESENTAÇÕES corriqueiras.

As próprias alucinações são representações. Não há como escapar disso. Dizer que as alucinações são “percepções sem objeto” é um total contra-senso, uma vez que: se não há objeto, não hásensação e, muito menos, percepção. Há somente duas origens possíveis para a geração de imagens mentais: externa (senso-percepção) ou interna (representação). Se sua origem não é externa (ausência de objeto), só pode ser interna. Já discutimos o tão decantado (e falso) “paradoxo das alucinações” em outros textos deste Blog. Ele foi gerado apenas por um grave erro conceitual e influenciado pelo termo alemão para PERCEPÇÃO: WAHRNEHMEN (tomar por verdade: a referência é o observador, tão alemão!). Em PERCIPERE (tomar posse do mundo circundante, a partir da percepção) a referência é o próprio mundo. Aquele falso “paradoxo” nada mais é do que uma submissão intelectual em relação aos germânicos.

AS EXPRESSÕES/DENOMINAÇÕES DO TÍTULO

Têm sido usadas como sinônimas, certamente pela insatisfação em relação ao termo consagrado. Segundo nossa impressão, porém, ou não trouxeram contribuição, ou serviram para complicar ainda mais o problema. O termo “PSÍQUICA” implica uma redundância gritante. Existiria algum fenômeno, em nossa mente (e até no nosso cérebro), que não tenha alguma relação com o que se denominou “psiquismo”? Dessa forma, se tudo é (também, mas não exclusivamente) psíquico, aplicar a palavra PSÍQUICO/A, para alguma qualificação, não acrescenta absolutamente nada. Afinal, todas as alucinações são psíquicas. Poderíamos falar também em: ilusões psiquícas, pareidolias psíquicas e assim quase ao infinito.

Pode ser que Baillarger tenha pensado em “psíquico” como relacionado ao pensamento ou à razão, na medida em que elas se prenderiam por demais à sugestionabilidade, mas essa restrição de significado ao termo não deve ser aceita. A única possibilidade de se atribuir algum sentido àquela denominação seria através do uso original (e grego) do termo: ligado à ALMA. Nesse caso, entretanto, sairíamos do nosso campo de investigação.

O uso de “APERCEPTIVA” (Kahlbaum) na outra expressão não deixa de ter o seu interesse, pois transfere o problema para a esfera onde ele se dá: atribuição de novos significados a possíveis conteúdos mentais e estímulos sensoriais. É bom não esquecer dos 3 momentos da tomada de contato com o mundo exterior (ou com o próprio organismo): SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO e APERCEPÇÃO. Quando, entretanto, o autor chama o fenômeno de ALUCINAÇÃO, perde completamente critérios absolutamente essenciais para assim chamar uma falsa percepção qualquer. Dessa forma, e apesar de induzir algumas incompreensões—especialmente sua aproximação com as alucinações—o termo original, PSEUDO-ALUCINAÇÃO, é ainda o melhor.

Quando refletimos sobre o tema, lembramo-nos do “demônio” de Sócrates que somente se fazia “ouvir” em momentos extremos e sempre com a ordem de impedimento à realização de um ato qualquer. Por isso, gostamos muito de pensar mais em variações extremas do normal (para muitos desses fenômenos) do que em sintomas propriamente ditos. Quem sabe há estados extremos de excitação capazes de induzir uma espécie de “shunt elétrico” (ou um curto circuito) entre vias aperceptivas e sensoriais? Nesse sentido, um estado mental (de ameaça, por exemplo) em pessoas mais sugestionáveis, promoveria uma apercepção como que proveniente do meio, a qual, por sua vez, “produziria” (nesse mesmo meio) os estímulos necessários. Melhor ainda, talvez seja o estudo do efeito da privação de contato social em pessoas isoladas por muito tempo. Elas simplesmente começam a se comunicar com seres imaginários. Que esses fenômenos se prendem mais a um estado geral da mente do que a um distúrbio especificamente da senso-percepção é o que sugere uma afirmação do próprio Kandinsky: quando as pseudo-aluniações empalidecem (perdem sua vivacidade e brilho), fazem-no todas ao mesmo tempo.

Que enorme capacidade temos para REPRESENTAR! Por que essa propriedade tem sido relegada a um papel tão sem importância através dos tempos?

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ