Arte e Cultura

BRASIL: PAÍS DO FUTURO….DA HUMANIDADE?

(Depois de “sequestrada”, a CULTURA foi chamada ERUDIÇÃO)

Márcio Amaral, vice-diretor IPUB

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NOTA: trata-se de uma sequência de textos nos quais demonstro que a afirmação permanente de nossa CULTURA POPULAR—pela gente do próprio povo e apesar dos muitos ataques—há de nos tornar uma referência para os povos do mundo…um dia.

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(“J.S.BACH-1685-1750”)

O “sequestro” da cultura, pelos mais ricos e em alguns países, atingiu tal magnitude que chegamos a esquecer a origem POPULAR (envolvendo manifestações religiosas e outras…tão populares) de TODA a CULTURA digna do nome, incluindo até mesmo a música de Bach, Beethoven, Brahms* e tantos outros. E como essa música é hoje chamada? ERUDITA** ou “de CONCERTO”…tocada em salas destinadas somente aos “entendidos”, é claro! Seria por acaso que as DANÇAS muito POPULARES (sarabandas, gigas, gavotas, e outras) estão na base das inúmeras suítes que Bach escreveu? Era o resgate da dança na música em geral, depois dos terríveis ataques medievais. O mesmo se pode dizer das demais grandes obras de arte: todo artista é filho do seu povo e da sua cultura. Aqueles músicos eram homens do povo e nele se inspiravam, até mesmo quando se dirigiam a Deus. Havia, sim, um OBJETIVO por parte dos privilegiados quando se “apoderaram” da cultura (objetivo não muito claro ou especificamente intencional, é verdade): fazer com que a gente do povo se envergonhasse da sua condição aceitando a ascendência e a manutenção dos privilégios daqueles que eram “capazes de produzir tantas maravilhas”. E se esses (a aristocracia) teriam dado “origem” às obras de arte que impressionavam todo o mundo (afirmando a importância do próprio país/povo), então, e para benefício de todos, seria “natural” que continuassem a desfrutar de privilégios cada vez maiores. Essa a GRANDE MENTIRA na qual os povos acreditaram

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O POVO ENVERGONHADO DELE MESMO

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E assim o povo foi ALIENADO de sua própria CULTURA começando a se envergonhar da sua própria condição. E dizer que aqueles artistas eram como que a voz de seu povo! Ou alguém acha que é em “torres de marfim” que se produzem obras de arte? E qual o resultado estético e artístico daquele “sequestro” da cultura e da música em particular?

1-um número infinito de repetições daquilo que é “antigo” (clássico); muitas vezes sem vida ou interesse—até mesmo das próprias “elites” que usam os “acontecimentos” mais como desfile de moda e ostentação.

2- já para a gente do povo, uma “globalização” que apenas espalha grosseria e total falta de criatividade nas “manifestações” de aglomerações de gente tornada “massa amorfa”. Aliás, há que afirmar sem qualquer medo de errar: TODA “GLOBALIZAÇÃO” implica a passagem de “tratores simbólicos” sobre as manifestações culturais locais…aquelas que são a cultura propriamente dita. Eventos como “ROQUINRIO” e outros nos quais as pessoas ficam saltando como ursos amestrados são uma ameaça à cultura. Cultura e “massa amorfa” são expressões que se excluem. Nas manifestações culturais brasileiras, por maior que seja a multidão, podemos discernir cada rosto com sua expressão: particular e muito individual.

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JÁ POR AQUI: ORGULHO DA GENTE EM NOSSAS FESTAS!

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Essa é a grande diferença da situação do Brasil em relação à imensa maioria dos outros países. Há, sim, alguns que também o conseguiram***. Mas…Vamos à França, onde essa situação se estabeleceu mais claramente, embora algo muito parecido possamos dizer da Alemanha, Inglaterra, EUA e outros.

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É em “Père Goriot” (H. de Balzac 1835) que essa admiração/submissão absoluta da gente do povo à nobreza ganha contornos mais dramáticos. Um pai que fez alguma fortuna, apesar de sua origem na classe média baixa, tudo faz para criar suas 2 belas filhas de maneira a se casarem com nobres. Tem pleno êxito: elas entram para a nobreza, e ele passa a entrar em suas casas pela porta destinada aos criados, nunca sendo apresentado como o pai. Recebia aquilo que merecia, pois tudo começara pela sua própria auto negação. Morre absolutamente sozinho e louvando o destino das filhas para seus conhecidos. Era o que lhe restava de uma “leve tintura de orgulho” pela vida que levou. Que suas filhas tivessem se tornado “nobres” era uma justificação da sua própria vida. Impossível maior autonegação e disso nada pode resultar de bom.

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Em “Lucien Leuwen” (Stendhal 1834), durante a decadência pós-napoleônica e logo depois da Rev. de 1830 pela liberdade de imprensa, vemos as primeiras manifestações de inveja que alguns ricos (mais generosos e diferenciados) podem ter da gente do povo, especialmente o jovem muito rico, aprisionado em seus próprios hábitos muito refinados; sempre dividido entre seu espírito republicano e a nobreza. A luta de classes já se apresenta ali quando os batalhões são enviados para acabar com as revoltas de trabalhadores.

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Em “Germinal” (E. Zola, 1885), talvez o primeiro grande romance social da história, a simpatia para com a gente do povo se expressa quase exclusivamente no esforço de entender e justificar a pior barbárie que se pode imaginar. Durante as revoltas dos mineiros contra os exploradores, emasculam o homem que os tinha humilhado, exibindo seus órgãos em um estandarte. Tudo seria uma consequência natural da exploração desumana (de muitas crianças, inclusive) com crueldade comparável à da escravidão. O povo fora transformado em peça de uma engrenagem. Em sua explosão, a barbárie.

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EM QUE MAUPASSANT É TÃO DIFERENTE?!

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Antes de tudo, seu “BEL AMI” talvez seja o primeiro romance do “séc. XX”, embora escrito por volta de 1880. Um ex-soldado normando, jovem, belo e sedutor consegue ser aceito em um jornal onde sobe vertiginosamente conquistando as mulheres de seus chefes. Está longe de ser “virtuoso” no sentido da moral pequeno-burguesa, mas leva ao extremo uma virtude de feitio mais grego: o EXERCÍCIO DE PODER. Nunca perde sua energia original da província, parecendo até se orgulhar de seus pais, não repudiando nunca seus modos um tanto grosseiros. São eles (os pais), aliás, que sofrem uma total aversão à mulher muito refinada com quem “Bel Ami” (apelido carinhoso colocado por uma menina) se casou e que os vai visitar. George (seu nome), depois de entender todas as manobras imorais com que se movimentam os mais ricos e poderosos, diz a si mesmo: “…os homens fortes são sempre bem sucedidos, seja por um meio ou por outro”Se essas eram as regras do jogo, ele haveria de aplicá-las melhor do que os que as tinham “enunciado” tacitamente. E essas “regras” não respeitavam nada, inclusive outros povos e países. De seu chefe (dono do jornal), depois de ganhar milhões de francos em manobras que envolveram a invasão do Marrocos, diz o autor: “Não era mais o judeu Walter, dono de um jornal suspeito; diretor de um jornal suspeito, deputado suspeito de negociatas sujas. Agora, era o Senhor Walter, o rico israelita”. Mas é desse mesmo chefe que “Bel Ami” conquistará a esposa; raptará (com consentimento e participação) a filha com quem se casará, deixando um rastro de derrotados no caminho: “Ai daqueles que se atravessarem no meu caminho!”. Tudo parece se justificar moralmente pela afirmação que faz da sua própria gente e da sua província: “…Tenho uma certa fortuna. Serei candidato nas próximas eleições pela minha PROVÍNCIA onde sou muito conhecido…Irei longe…”.

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Mais adiante, e depois de raptar a filha do chefe passam uma semana em idílio. Tendo comprado roupas brancas, “…vestidos à maneira camponesa, puseram-se a pescar com a cabeça coberta por um imenso chapéu de palha enfeitado com flores silvestres”. Por fim, e consumado seu triunfo ao se casar na maior pompa parisiense que se pode imaginar, fez uma grande homenagem à sua própria origem e a seus pais e amigos: “Tornava-se um dos senhores da Terra. Ele, filho de dois pobres camponeses de Cantelet…Viu-os de repente (os próprios pais e na imaginação), na humilde taberna, no alto da encosta, por cima do grande vale de Rouen:…dando de beber aos lavradores da região…“. Esse “dando de beber” é lindo mesmo! De minha parte, digo que esse respeito e louvação à gente simples de seu povo quase justificam seus feitos (também me sinto preso a certos valores, digamos assim, pequeno-burgueses). Pelo menos lhes dá um sentido novo e mais elevado. Não é à toa que as elites francesas não conseguem disfarçar, até hoje, seu mal estar para com GUY DE MAUPASSANT.

………………CONTINUA….

*Tocava em bares de Hamburgo; não teve nenhuma formação protocolar e foi o maior músico de seu tempo. Dele disse R. Schumann quando ouviu suas primeiras composições: “Athena saltou da cabeça de Zeus totalmente armada e de escudo em punho”. E como os academicistas o invejaram!

**Não posso me furtar a um trocadilho: só se foi música “Eros Dita”, ou ditada pelo amor!

***A Rússia, a Espanha e a Suécia—que preservou as festas pagãs tornando-as suas maiores datas (contrariamente à imensa maioria dos países europeus)—são exemplos dessa preservação da CULTURA original.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ

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