Temas e Controvérsias

CASO CLÍNICO: CAFEÍNA PROMOVENDO INTEGRAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E SUPRIMINDO CONDUTA AGRESSIVA EM PACIENTE COM DEFICIÊNCIA MENTAL GRAVE-I

Fra1- IDENTIFICAÇÃO: LMT, 19 anos, brasileiro, solteiro, sem profissão, totalmente dependente da sua mãe e de outros parentes. Trata-se de paciente sem desenvolvimento da fala, mas que consegue se comunicar por gestos e mímica, conforme será visto no relato.
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2-QP (da família): incapacidade de manuseio de conduta agressiva antiga—com agravamento progressivo nos últimos anos—surgida pela manhã, logo após o despertar, durando cerca de 2 hs e seguida de tendência ao isolamento e até choro convulso.
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3-HDA: Quando da observação da grave deficiência no seu desenvolvimento, ainda nos seus primeiros anos, o paciente foi submetido a uma investigação ativa quanto às possíveis causas da condição, inclusive no I. F. Figueira. Apesar dos esforços, não foi possível estabelecer uma causa específica para a condição. Até cerca de pouco mais de 2 anos, era já observada alguma agressividade pela manhã, mas ainda era possível manuseio sem maiores problemas. Desde então a situação se agravou, o que dificultou seriamente o desenvolvimento e execução de qualquer atividade no curso do dia. Os diversos tratamentos a que foi submetido priorizaram quase sempre os esforços de INIBIÇÃO de conduta através de ANTIPSICÓTICOS, algumas vezes em doses absurdas (15 mgs de risperidona e outras), sabiamente não seguidas pela sua mãe que também não retornava àquele (a) que fizera a prescrição. O paciente esteve também em acompanhamento no CARIM-IPUB.
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MINHA INTERVENÇÃO:
Em out/2017 (primeira consulta em 09/10) fui procurado por sua mãe, segundo indicação do Prof. B. Couto. Como não sou especialista na área (embora me interesse muito a respeito) dispus-me a fazer uma consulta para verificação da possibilidade de revisão diagnóstica e encaminhamento. Colhida a história, observando a clareza dos relatos e sua confirmação pela observação, associei sua grande piora pela manhã a possíveis manifestações do humor, especialmente depressão, com costuma acontecer. Parti da hipótese de que o paciente sofria intensamente durante as manifestações assinaladas (e também depois), fato frequentemente negligenciado e que foi confirmado. O paciente vinha fazendo uso de 3mgs de Risperidona pela manhã e mais 3 mgs ao deitar. Investiguei história quanto ao possível uso anterior de algum ANTIDEPRESSIVO e colhi ter ele (há alguns anos) feito uso de PAROXETINA (até 40 mgs/dia) por algumas semanas. Teria obtido melhora inicial, mas as condutas agressiva retornaram em algumas semanas (mesmo com uso em doses efetivas) o que levou o colega a abandonar o uso da substância. Apostei na prescrição de outro ISRS (CITALOPRAM) e aconteceu o mesmo: melhora por cerca de uma semana e retorno da conduta agressiva, mesmo com a elevação da dose do antidepressivo.
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Tendo julgado que minha participação se esgotara, marquei sua ida ao IPUB (início de novembro/2017) para reencaminhar seu tratamento institucional. Foi encaminhado para um CAPS que chegaram a visitar e cujo funcionamento apreciaram. Nesse mesmo dia, no IPUB, investiguei mais uma vez alguns aspectos da situação específica associada às suas agitações. Mãe e tia disseram ter a impressão de que, durante esses episódios, o paciente agia como que reagindo a eventos sonhados: fixava o olhar em paredes, apontava pessoas (imaginárias e reais) e batia levemente no próprio braço, como se tivesse sofrido alguma agressão. Essa situação se verificava em praticamente TODAS as manhãs. No restante do dia, entretanto, o paciente era pessoa muito agradável e carinhosa e isso foi fundamental para a reflexão que fiz e também para a implementação da conduta descrita mais abaixo.
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O USO DA CAFEÍNA E ESTABELECIMENTO/INTEGRAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
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Foi quando resolvi levar adiante a associação que já fizera no caso, a partir de estudos de outras épocas: o papel da FORMAÇÃO RETICULAR ATIVADORA na transição do sono para a vigília. Todos nós passamos por um período mais ou menos longo na retomada plena da consciência (estado hipnopômpico) durante o qual podemos sofrer manifestações que podem ser mal entendidas como sintomas—na maior parte das vezes falsas percepções—especialmente valorizadas por pessoas muito sugestionáveis. A FRA (ou ARS, em inglês) parece ser a principal responsável pela passagem do sono à vigília: sua estimulação elétrica provoca a substituição das ondas de repouso no EEG (alta voltagem e baixa frequência) pelas do despertar (baixa voltagem e alta frequência). Mas esse processo não é imediato, como sabemos por experiência própria. Há grande variação individual na sua duração e também em cada um, dependendo de múltiplos fatores. Além disso, a retomada plena da CONSCIÊNCIA implica uma LATÊNCIA variável associada à inserção do MOMENTO ATUAL na “linha do tempo” que vivemos até aquele momento. Afinal, estar consciente implica: integração coerente e compartilhada das situações e “inclusão” (permanente e continuada) do momento atual na “linha do tempo”* (apenas de nossas vidas, é claro, uma vez que o TEMPO, propriamente dito e como uma “coisa”, simplesmente NÃO EXISTE, conforme demonstrado por LEIBNIZ, refutando NEWTON, e confirmado por Einstein).
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“…Fitou o objeto com um olhar confuso; com essa incompreensão de quem se vê subitamente despertado do sono…”. G. de Maupassant, “Uma Vida”
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Liguei para a mãe do paciente e investiguei sobre todos os procedimentos que adotava pela manhã para com o paciente: ao primeiro sinal de despertar pelo paciente, dava-lhe os comprimidos macerados (o que também podia gerar alguma variável de difícil controle) em leite que ele bebia sem problemas. Foi quando, depois de várias ressalvas do tipo: “A Sra vai estranhar, mas a conduta que vou sugerir tem um princípio…É diferente de tudo o que a Sra já ouviu, mas não tem qualquer risco…O máximo que pode acontecer é que ele fique um pouco mais inquieto…Eu gostaria que a Sra, em vez de leite, preparasse um café bem forte e lhe desse pela manhã (a maceração era inevitável). Sua mãe resolveu o problema dando-lhe café (bem concentrado), mas com leite. Desde então (primeira semana de novembro/2017), ocorreu uma modificação importante em todo o quadro: paciente não mais sofreu episódios de agitação psicomotora (apenas inquietações e algum “stress”, segundo termo da família no curso do dia); tem estado com muito bom humor e realizado muitas atividades que sempre enumera com os dedos em gesto muito pessoal e expressivo, enquanto a mãe os vai assinalando verbalmente. No início de dezembro foi feita a tentativa de diminuição da dose de Risperidona pela manhã (de 3 mgs para 1,5mgs), mas o paciente apresentou alguma agitação e resolvemos voltar à dose anterior para futura redução. Orientei também, e depois de afastar a existência de manifestações de intoxicação cafeínica, para que dobrasse (de forma empírica e aproximada) a dose oferecida de cafeína. Desde então, o paciente tem estado bem, ativo e de bom humor. Sofreu, no período, episódio de infecção de garganta, apresentando abatimento, mas sem maiores complicações. O testemunho de sua melhora é dado também pela AVÓ, por uma tia e por um tio muito envolvidos na situação e presente nas 2 consultas realizadas. Os esforços, a partir de agora, serão dirigidos à possibilidade de RETIRADA progressiva (segundo as possibilidades) da RISPERIDONA, mas com a perspectiva de manutenção de pequena dose à noite; por um tempo maior, pelo menos.
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NOTA-EVOLUÇÃO (08/0118): como colhi relato de variações (de bem menor intensidade do que as manifestadas no início) de conduta pela manhã, orientei que a mãe anotasse em um caderno especial como cada dia se deu. Teria sido uma boa providência desde o início. Como esteve muito bem na semana seguinte, resolvemos fazer nova tentativa de diminuir a dose da Risperidona (de 6 para 4,5 mgs) pela manhã. A mãe observou que o paciente ficou um pouco mais irritado no curso do dia, o que motivou a orientação para retorno da dose anterior. Cabe frisar que essas manifestações são muito diferentes das que motivaram a condutas aqui discutidas. Como a tentativa de redução da dose de risperidona era apenas preventiva, decidimos manter a mesma dose até a feitura de nossas dosagens, inclusive hormonais.
Em 22/01 colhi observação por seus parentes (mãe e avó) de que o pac. estaria novamente apresentando—logo após o despertar, mas em menor intensidade—as manifestações descritas acima e que são o objeto maior dessa investigação. Como Dr Allan G. Dias havia antecipado, isso sugere fortemente desenvolvimento de uma TOLERÂNCIA à cafeína. É a segunda vez que algo semelhante acontece, sempre depois de algumas semanas de seu uso em doses maiores e muito efetivas (de início). Para o atendimento clínico é algo indesejado, mas serve também para REFORÇAR ainda mais a hipótese de uma AÇÃO VERDADEIRAMENTE EFICAZ da cafeína no caso em questão, estimulando a FRA. Intuitivamente a família começou a aplicar alguns procedimentos de resultado muito interessante: enumeravam atividades a executar; objetos a comprar e outras atividades que ele segue contando nos dedos. Isso o tranquiliza um pouco e é fator de estímulo cortical.
NOTA-23/02: o paciente continua bem. Há poucos dias, na escola que frequenta e diante de uma foto de M. Lobato (com a sua sisudez bem conhecida), apontou para a imagem e fez gesto como se ele o tivesse agredido. Não houve outras consequências. No próximo texto: CONCLUSÃO, apresentaremos entrevista com a mãe do paciente pelo Dr Allan G. Dias.
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ALGUMAS QUESTÕES DE DISCUSSÃO IMPRESCINDÍVEL
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Um eventual EFEITO PLACEBO, subjacente à resposta verificada, está praticamente descartado, dadas as condições do próprio paciente. A existência de uma espécie de “efeito placebo indireto ou por tabela” (a partir de uma eventual ação sobre a família) parece não ter sido descrita até hoje. Além disso, a mãe nem tinha grandes expectativas iniciais para com a orientação recebida de mim. A rigor, estava mesmo era muito descrente nas intervenções médicas em geral. Trata-se de situação que, a ser confirmada em um seguimento mais longo, tem muito interesse, mas não implica padronização de condutas semelhantes para situações consideradas parecidas. A situação aqui descrita reuniu condições muito especiais cuja investigação levou à hipótese. Uma das vantagens da tentativa era o NENHUM (ou quase) risco associado e com alguma perspectiva de benefício.
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*Por tudo isso, a afirmação de K. Jaspers: “A consciência representa o todo momentâneo da vida psíquica” parece-me apresentar duas inadequações. Primeiro, todos já sabemos que ela está longe de ser o “TODO”. Depois, sua presença implica continuidade histórica, ou seja, não propriamente momentânea.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ