Arte e Cultura

CIGANOS: E A CRIANÇA FOI ROUBADA À SUA CULTURA-II

(“Meu destino é andar por esse país/Prá ver se um dia me sinto feliz…”)

Para Dominguinhos, in memoriam

Márcio Amaral

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Nada expressa mais a incompreensão* dos europeus em relação aos ciganos (e à sua cultura) do que o desfecho dado à situação da criança por eles mesmos batizada “Anjo Louro”. No texto anterior, eu falava do roubo das crianças ciganas pelos “povos fixados”, fenômeno absolutamente comprovado. Pois foi exatamente o que terminou por se configurar no caso específico e, dessa vez, com o beneplácito oficial e legal. Diga-se de passagem, a tão repetida acusação desse tipo de roubo por parte dos ciganos, nunca foi comprovada. No caso, ficou demonstrado: 1-tratava-se de uma criança cigana que; 2-por um acaso de momento (ou período) teria nascido na Bulgária; 3-a partir do ventre cigano de uma mulher que não conseguiu exercer o papel de mãe. Uma outra família cigana acolheu a criança que fora rejeitada, certamente sem pagar nada. A família acolhedora tinha já muitas crianças sob sua guarda: nada mais do que uma enorme generosidade. Ou seja: a criança era cigana e continuava a fazer parte de sua cultura. Perdera a mãe biológica, mas não perdera a sua cultura. Agora, perdeu as duas e através da aplicação de leis não ciganas: A CRIANÇA FOI ROUBADA À SUA CULTURA e isso é um absurdo de que ninguém fala. Nesse ponto, no Brasil, estamos mesmo em uma situação melhor. Aqui, ninguém aceitaria que crianças índias, por exemplo, fossem afastadas de sua cultura sob argumentos que são sempre pérfidos. Apesar de todo progresso econômico-industrial, a Europa não evoluiu nada no que se refere à humanidade nos costumes.

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As “autoridades” decidiram que ela seria dada (ou vendida, quem sabe?) a uma família búlgara, certamente muito loura, que deverá tentar fazer com que ela nunca saiba de sua origem…cigana.Será cumprido aquele princípio de que todos têm direito a saber  sua própria origem, ou ele será negado aos ciganos? Quem sabe a futura mocinha não se orgulharia disso e sairia pelo mundo a procurar por sua origem…cigana? Há que perguntar: que tribunal, de que país, tomou essa decisão? Um tribunal grego, onde a criança estava de passagem? Foram ouvidas lideranças ciganas no processo? Poderia essa criança ser considerada búlgara ou lá teria nascido apenas por acidente, como costuma acontecer entre os ciganos? Há um ditado muito brasileiro (que já utlilizei na Embaixada Brasileira na Suécia, quando se negavam a fazer o registro de minha filha sueca, mas nascida na Alemanha por uma contingência fortuita): “O FATO DE UM GATO NASCER NO FORNO NÃO O TRANSFORMA EM BISCOITO POR CAUSA DISSO!“. Para os que possam se interessar pelo desfecho do impasse, digo que o funcionário, de imediato, foi falar com algum superior e o registro de minha filha foi concedido. Corria o ano de 1991 e, muito depois, vi que o concedido (reconhecido, em verdade) era “supralegal”, tornando-se, nos anos que se seguiram, uma reivindicação de inúmeras famílias na mesma situação. Tudo isso deveria ser suficiente para demonstrar que os ciganos têm fortes razões para permanecer fora dessa máquina desumanizadora. Fica aqui a louvação àqueles que, segundo uma forma bem brasileira, simplesmente aplicaram aquilo que era mais razoável e HUMANO na minha situação. Essa fórmula é tão simples, não?

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Seriam os “povos fixados” mais felizes do que os ciganos?! A perseguição que deles fizeram (e fazem) é uma indicação de que NÃO. A mais mesquinha e imoral de todas as fábulas, “A CIGARRA E A FORMIGA”, nada mais é do que a expressão da inveja que tinham os “fixados” em relação aos “povos andarilhos e boêmios”. Enquanto os “fixados” eram explorados em minas de carvão, vestiam cinza e forçavam seus pulmões e mentes, impregnados por fumaça e mecanização; os ciganos, com sua alegria, cores e vivacidade, representavam mesmo uma ofensa viva que precisava ser eliminada. A denominação BOÊMIOS, aliás, foi-lhes atribuída em vários lugares e todos os boêmios do mundo compartilham algo com os ciganos. Pobre da humanidade se todos tivessem se fixado, “cada um seu quadrado”! Até essa brincadeira é muito expressiva. Os “senhores do mundo” gostariam muito de nos oferecer duas opções: sermos tornados uma massa amorfa, sem individualidades; ou totalmente separados…cada um em seu quadrado. “Sociedades? Não existem! O que há são indivíduos!” (M. Thatcher). Pois que venham os ciganos!

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Posso até imaginar a pobre criança, anos depois, tentando se reencontrar com sua própria história! Afinal, muito do que já viveu haverá de permanecer registrado em sua memória “não declarativa”: sem acesso à consciência e impossível de se tornar narrativa. Como acontece nesses casos—e isso deve ter se dado com os poetas alemães—aquelas memórias (quem sabe também atávicas, pulando gerações, mas sempre voltando) haverão de permanecer em sua mente como um todo, atuando e gerando perplexidades. O pior é que, até pela ausência da referência cigana, seu “mundo perdido” há de ser associado a alguma pátria: “Da pátria, lá atrás, um relâmpago vermelho….mas pai e mãe estão já há muito tempo mortos/E ninguém lá me conhece mais” (“No Estrangeiro” JF. Einchendorf, musicado por Schumann); “…Não sei onde estou…/O rouxinol está cantando/Como se quisesse me dizer alguma coisa/De algum adorável tempo passado…/Minha amada está esperando por mim/Mas está morta há muito tempo” (idem).

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Por aqui, e entre nós, também temos um povo que adora migrar, mas, contrariamente aos ciganos, onde quer que vá, consegue não apenas se adaptar, como criar seus próprios “nichos porosos”, integrando-se muito bem com a gente e a cultura do lugar. Mais do que isso, tornaram-se um fator de união nacional: os nordestinos, especialmente aqueles que trouxeram somente o que cabia “no seu matulão”. Há, nesse aspecto e em verdade, dois tipos de nordestino: um que diz “Meu destino é andar por esse país…” (“Quem me levará sou eu”, Dominguinhos), enquanto o outro responde: “Eu vou ficando por aqui/Que Deus do céu me ajude/Quem sai da terra natal/Em todo canto não para/Só deixo o meu cariri no último “pau de arara”…”(Venâncio e Curumba). Quando da aventura paulistana de 1932, durante a qual eles ousaram pensar em se separar do Brasil (sob pretexto de lutar pela democracia), diz Mário de Andrade terem sido os nordestinos (radicados em São Paulo) um dos fatores que mais minaram a frente fratricida que se formara, especialmente entre os descendentes dos italianos. As pessoas levam muito da sua cultura quando migram. As forças de desagregação trabalham intensamente na península itálica…e em São Paulo.

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Já os nossos nordestinos, têm uma disposição muito diferente….: “…Amigos a gente encontra/O mundo não é só aqui…/Não diga que eu me perdi/Não mande me procurar/Cidades que eu nunca vi/São casas e braços a me agasalhar/Não diga que eu fiquei sozinho/Não mande alguém me acompanhar…”.  Há nisso uma crença no ser humano. Mas talvez seja mais uma certeza de que o próprio sentimento haverá de contagiar a todos e por onde passar. Se é uma ilusão!? Santa ilusão! Já o caminhante do inverno europeu (um cigano desgarrado?), rompidas suas ligações culturais, não tem a mesma confiança ou recepção (trechos de poemas diversos do mesmo ciclo “Winterreise”, Viagens de Inverno): “…Sob o teto estreito de uma carvoaria/Encontrei um abrigo/Mas meus membros não encontram repouso/Tanto suas feridas me torturam…”//…Não fiz nada de errado/Para me faça temer os homens/Que fatalidade insensata/Me arrasta para essas regiões desoladas? (Müller/Schubert).

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Nosso Dominguinhos, entretanto, continua expressando seu compromisso com sua gente e cultura: “…Repare a multidão precisa/De alguém mais alto a lhe guiar/Quem me levará sou eu/Quem regressará sou eu…”. O poeta, certamente, pensou em Deus ao dizer essas palavras. Alguns versos antes, porém, ele mesmo parecia um “quase Deus”: “Eu faço voltar o tempo, outra vez/Tudo outra vez a passar….

E quem seria, então, esse “alguém mais alto” a nos guiar, que não Deus? A própria CULTURA de cada povo, imprimindo sua marca em cada ato individual e elevando àquele papel todos os que por ela lutam! Teria sido essa a inspiração de Francisco Goya ao pintar o seu “O COLOSSO“**? Estava a Espanha invadida por Napoleão e tornada um mero palco de guerra entre franceses e ingleses. Toda a cultura espanhola estava ameaçada e o país humilhado, mas o colosso (Povo/Cultura/Nação) mais uma vez se erguia e abria seu próprio caminho. Hoje, essa ameaça contra todas as culturas tem por nome “GLOBALIZAÇÃO“. Suas primeiras vítimas foram os ciganos, que perderam o rumo, depois que aquele histórico papel de aproximar todos os povos do mundo se perdeu. A Europa quase nada mais guarda das manifestações culturais de seus povos e de outros séculos. Aqui, continuamos resistindo e muitos “Colossos” ainda haveremos de pintar.

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*Essa palavra é fruto de uma condescendência para com os governos europeus. Pensemos que “Eles não sabem o que fazem”; que não aprenderam nada e, por isso, continuam repetindo as mesmas condutas preconceituosas. Que mal faz o narcisismo…individual e coletivo!

**Recentemente, duvidaram da autoria de Goya para essa pintura. Pode até ser que muitas das pinceladas ali contidas não sejam provenientes de seu pincel. A concepção, que traz em si algo de “para além” (e quase louco), entretanto, só pode ser de uma mente “para além”: de artistas que, especialmente nas situações extremas, intuem algo muito para além de sua época.

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