Arte e Cultura

E CUBA (COMO PORTUGAL) FEZ-SE AO MAR!

(Criticar a Ilha? Só quando se resolver o ESTADO DE GUERRA em que se encontra)

Márcio Amaral

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cuba

NOTA: diante do meu luto eleitoral, cabe-me resgatar alguns textos que deixei de lado em decorrência do surgimento de temas mais candentes. Este penso continuar a ter atualidade, especialmente agora que a humanidade está apelando a Cuba como uma possível salvadora por conta da epidemia de Ebola: a maior vergonha mundial em termos de saúde….E a possibilidade de uma vacina esteve logo ali.

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baia dos porcosHá certos males que servem para abrir questões e reformular ideias! É o caso do “Mais Médicos”. Alguma simpatia profunda pela Ilha—abalada eventualmente por certas notícias vindas de lá*—sempre retornava, apesar de tudo, e na intensidade original. Não era nada muito racional, encontrando sustentação também em um certo “antiamericanismo” que as lideranças dos EUA teimam em provocar ativamente no mundo todo. Agora, aguçado que foi esse conflito de valores, a partir do referido programa, encontrei um racional para sustentar essa simpatia. Deixando de lado os embargos e os bloqueios: Cuba é um país invadido (Guantánamo) por uma grande potência. Por isso, está em ESTADO DE GUERRA permanente. Já sofreu invasão do restante de seu território (sem falar na ocupação permanente) confessamente patrocinado pela mesma potência (Baía dos Porcos…..aliás, foi um “trabalho de porcos” mesmo). É algo sabido por todos: os estados de guerra implicam certas medidas de exceção, não há como negá-lo. CONCLUSÃO: somente haverei de atacar o governo cubano, quando terminar esse ESTADO DE EXCEÇÃO. Simples, não? Não! Nem isso é simples.

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Há absurdos por lá? Sim e esse trabalho de médicos patrocinados e agenciados pelo governo, em acordos com outros governos, é um deles. É uma violência contra os princípios estabelecidos pela OIT? Sim. Mas foi uma questão de sobrevivência. Aliás, é assim que tem sobrevivido a Ilha…mas já foi bem pior: logo após a queda da URSS. Todos, então, pensaram: “Agora cai!”…E não caiu. Para quem costuma “ficar do lado do mais fraco”, era impossível deixar de ter alguma admiração por essa capacidade de determinação. E não me venham considerar a possibilidade dessa não queda se dever a uma ditadura. Cuba não caiu, em sua resistência aos EUA, da mesma maneira que Leningrado e Stalingrado não caíram na luta contra os nazistas, apesar de todas as privações. Já a URSS, e os governos de toda a Europa Oriental, mesmo com toda a dureza das suas ditaduras, caíram. Então, até por lógica, há que abandonar esse discurso.

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Fazendo um paralelo, atravessando o oceano e alguns séculos, houve dois momentos em que Portugal ficou quase que literalmente “ilhado”: por muçulmanos que ocupavam o restante da Pen. Ibérica e depois, pela invasão napoleônica. E o que fez? “FEZ-SE AO MAR”! Era o que lhe restava! Reduzida às palavras, essa expressão soa estranhamente, não? Quando, entretanto conseguimos nos alçar ao simbólico, vemos toda a sua verdade e beleza! De outra forma, Portugal teria sido simplesmente “desfeito”. Logo, o crescimento para o mar garantiu a sua existência. Por isso, FEZ-SE AO MAR. Navegar, mais do que nunca, era uma questão de sobrevivência: de uma cultura e de um povo. Cuba, de alguma forma, foi também encontrar a razão de sua existência fora dela mesma. Primeiro, como foco de inspiração para revoluções mundo afora! Derrotadas as revoluções, foi garantir a sobrevivência de Angola contra as invasões patrocinadas pelo regime sul-africano e seu “Apartheid. Um grande sucesso! Agora, está “exportando” mão de obra para a saúde. É anômalo? Sim. É também uma questão de sobrevivência. A responsabilidade não deixa de ser daqueles que a espremem deixando-lhe apenas algumas inventivas soluções possíveis. O mundo é totalmente torto. Não culpemos apenas Cuba por ter crescido nessas condições e por não lhe terem sobrado muitas opções de caminho. A outra possibilidade seria entregar-se à sanha devoradora daqueles que não se cansam de lhes rondar salivando como lobos esfomeados.

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NOTA: o que ficou conhecido por Escola de Sagres (Algarve, 1417, D. Henrique) teria sido, na verdade, uma feliz reunião de grandes cabeças e mentes livres (judaicas e árabes inclusive) expulsas pela Inquisição. Não teria sido uma ESCOLA no sentido formal da palavra, mas se tornou a maior escola de navegação da história. Por cerca de um século, o pequeno reinado de Portugal foi o maior baluarte da afirmação ocidental.

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Impossível imaginar um simbolismo maior para esse "atirar-se ao mar" em caso extremo do que o local escolhido para a construção da Escola de Sagres
Impossível imaginar um simbolismo maior para esse “atirar-se ao mar” em caso extremo do que o local escolhido para a construção da Escola de Sagres

Há nos contos de Guy de Maupassant um desfile de perversões típicas da França do final do séc. XIX. Se fosse uma mera feira de horrores, não teriam muita grandeza. Acontece que ele sempre dá uma outra dimensão a essas perversões: sua origem na proverbial hipocrisia francesa; no dinheiro/fama como objetivo principal da vida, atropelando todos os valores humanos. A propósito de Cuba, em um desses contos, denominado “Mãe de Monstros”, uma mulher engravida e, por vergonha e medo de punições–esmaga o próprio ventre continuamente e com todo tipo de faixas. A criança termina por nascer e é um aleijão aberrante. Sabendo do caso, um “empresário de circo de horrores” oferece um bom dinheiro pelo “rebento” e ela o vende. A partir de então, a mulher se torna uma “fábrica de aberrações”, “produzindo” mais uma dezena desses aleijões para exibição, “Estabelecendo até leilões entre os pretendentes…”. Todos são igualmente vendidos, apesar de continuarem a ser humanos. Quem sabe quantos sonhos eles, ainda assim e em sua miséria, continuavam a acalentar? Em seus “Novos Ensaios”, JG. Leibniz relata o veredito que alguns padres eram solicitados a emitir diante de “aleijões” desse tipo, logo após seu nascimento, quanto a serem ou não humanos. Meu critério, nesses casos, seria: a capacidade de sonhar. “A culpa é nossa, é tua, ó rico, é do teu ouro/Mas é no lodo que o mar esconde seu tesouro” (V. Hugo “Ó Não Insulteis”, as prostitutas).

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Poderia ter citado vários outros contos, mas esse apresenta a metáfora da vida espremida por todos os cantos e que (ainda assim) se afirma, crescendo para onde é possível. O “Mais Médicos” não chega a ser um “aleijão” (e haverá de salvar muitas vidas). Do ponto de vista das convenções da Organização Internacional do Trabalho, entretanto, pode ser visto como tal. Voltando a Cuba, diria que, até por temperamento e atitude, imagino que, se vivesse sob seu regime, teria sérios problemas de adaptação e até de conflito franco. É uma reflexão ociosa. Quando morreu um dissidente em greve de fome, Orlando Zapatta, a situação atingiu seu ápice negativo. Tentar desclassificar aquele ato dizendo ser ele um prisioneiro comum (afirmação repetida pelo governo brasileiro) foi uma “derrapada” inaceitável. Se era mesmo um “preso comum”, deixara imediatamente de sê-lo. Não há nada mais respeitável do que a determinação de uma greve de fome até a morte. Imagino que, desde então, muitas mudanças aconteceram e o ambiente parece ter melhorado. Um dia, o mundo ainda há de homenagear Zapatta. Embora seu país esteja permanentemente em ESTADO DE GUERRA.

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