Arte e Cultura

HAMLET: OS MUITOS ENGANOS DE UM “HERÓI” DESASTRADO!-I

(“SER ou NÃO SER?”… “Preciso atuar sobre o mundo! CHEGA DE MERAMENTE EXISTIR!”)

Márcio Amaral, vice-diretor IPUB

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NOTA: Algumas traduções reduzem muito o monólogo no qual o tio de Hamlet reconhece ter matado o Rei, seu irmão. Assim, em uma primeira leitura, não tive a absoluta certeza do crime, até porque havia situações um tanto rocabolescas associadas (ver abaixo). Resolvi manter o texto com a impressão inicial. Aquele monólogo, aliás e me desculpando pela atitude temerária, apesar de sua beleza, parece-me não acrescentar nada à tragédia e especialmente à trama. Para os que desprezam “livros de bolso”, a tradução de Millor me parece muito boa e convincente. Não me sinto em condições de julgar traduções. Todas, especialmente em poesia, têm um quê de paráfrase, como bem disse M. Bandeira. Essa foi a que mais me atingiu.

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O Príncipe Hamlet é um personagem moderno*. Disso, aliás, parece-me resultar o grande interesse que a muito complicada e confusa tragédia desperta. A linguagem poética do célebre monólogo “TO BE OR NOT TO BE” parece não ter sido muito bem entendida por muitos. Sua sentença essencial é a que diz: somente suportamos a vida (fardos, gemidos, etc.) pelo nosso medo da morte e por não saber o que nos espera; é isso o que nos inibe a VONTADE, levando-nos a aceitar os males conhecidos em vez dos ignorados (ou seja: “tudo são males”). É a CONSCIÊNCIA que nos torna a todos COVARDES; o frescor da RESOLUÇÃO (clareza da intuição) definha sob a máscara do PENSAMENTO; essas reflexões que nos desviam da meta que deixam de se chamar AÇÃO. Por fim, a CONCLUSÃO (embora seja fala anterior): nosso medo do que virá depois da MORTE tira-nos a CORAGEM até para um SUICÍDIO; “Quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes…(e muitos etcs)…se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal?”. Ou seja, a vida é uma espécie de prisão/escravidão, da qual sequer podemos escapar pela morte, pois isso poderia ofender o SENHOR dos escravos (Deus). É a tese do Fédon de Platão quando Sócrates tenta justificar o seu não suicídio, apesar de considerar a vida um MAL. Disso decorre, aliás a sentença mais SARCÁSTICA da filosofia. Quando está morrendo, Sócrates pede a Críton que mate um galo (pode haver simbolismo nisso também, afinal, é simbolo de virilidade) em agradecimento a Esculápio: “Devo-lhe um galo!”. A vida seria uma doença e a morte seu “tratamento”. Nietzsche acertou em cheio quando disse que Sócrates/Platão marcam o inicio da decadência grega.

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Incapaz de se tornar um homem de AÇÃO (até através do SUICÍDIO, embora houvesse muitas outras possibilidades) o príncipe parte para a destruição de tudo (ou quase tudo à sua volta, no que se refere à relações pessoais) através de JOGOS MACABROS…e de palavras, nos quais é insuperável. Além disso, fica óbvia também sua superioridade intelectual (especialmente no sentido do uso do VERBO de maneira CÍNICA). Sem querer fazer humor, há no célebre monólogo uma antecipação do deboche que, um dia, fiz  com a célebre sentença de DESCARTES (outros podem tê-lo feito antes, mas foi original): “PENSO, LOGO HESITO”. Mas há também um complemento,  “PENSO, LOGO DESISTO” (“Is sicklied o’er with the pale cast of thought”: adoecido sob a pálida máscara do pensamento). O que dizer ainda do objetivo da vida ser alcançar o…SOSSEGO (“quietus make”)! Quanta modernidade…no pior sentido da palavra! A tese principal do monólogo pode ser traduzida assim: é para não reconhecer nosso MEDO que nos enganamos com reflexões vazias; aquelas que servem principalmente para esconder nossa VACILAÇÃO diante da INTUIÇÃO imediata quanto ao que fazer (“frescor da resolução”) de imediato. Já o SOSSEGO…somente os muito precocemente envelhecidos e envilecidos querem esse sossego como OBJETIVO da vida. Que ele seja principalmente, talvez apenas, um retomar de energias!

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E O VILÃO!!! QUEM SERIA O VILÃO DA TRAGÉDIA?

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A mais difícil tarefa parece-me ser encontrar o VILÃO nessa tragédia. Afinal, não se pode falar de tragédia sem alguns vilões, como Macbeth por exemplo. De imediato, somos arrastados a uma identificação com o príncipe “herói” (suas conclusões e condutas) que traz consigo algo de infantilmente ridículo. Com isso, acabamos por repetir: os culpados (quase vilões, pois são todos tão pequenos!) são um tio—irmão do pai (a quem teria matado para casar com a viúva e herdar o trono)—e a viúva do rei morto, mais por conivência. As “provas” apresentadas por Hamlet, entretanto, nem forçando muito a tarefa—acusar e depois provar, “à maneira PARANÁ”— convencem alguém no pleno uso de seu poder crítico. Mas…como é difícil não se deixar arrastar para a ATMOSFERA da obra e pela simpatia (com um quê de ironia) de Shakespeare para com seu próprio e desastrado herói! Vejam TODOS os resumos e apresentações da obra (estou exagerando, mas li alguns): começam por reafirmar o assassinato do seu pai pelo tio, etc.! Contudo, ninguém…nem Shakespeare, haveria de me arrastar para a perda do juízo crítico, mesmo para com a ficção. Por que temos que permanecer circunscritos ao “campo” por ele mesmo delimitado? O olhar que aqui proponho abre tantas outras perspectivas para compreensão dos dramas humanos!

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Que Hamlet tenha precisado montar uma peça de teatro representando a cena imaginada de um crime totalmente inédito (derramar veneno no ouvido do rei adormecido como uma criança em seu berço) para ver como o “criminoso” reage e, com isso, ter “certeza da sua culpa”, além de trazer também sua dose de ridículo, COMPROVA que Hamlet não dispõe sequer de outros INDÍCIOS CIRCUNSTANCIAIS. Além disso, foi necessária a volta do morto (“Espectro”) para fazer a denúncia inicial…Se a moda pega!!! E a picada de cobra (alegada como causa da morte de maneira a esconder o “crime”)! Não teria deixado marcas? Uma coisa é certa: TODOS os personagens vivos (pois o mais importante e determinante é o rei falecido) são uma plêiade de covardes; pessoas de caráter fraco, manipuláveis e sem espinha dorsal. O novo rei, por exemplo, pagou um alto preço por não ter feito como os leões quando conquistam um “trono”: eliminar de imediato (afastar teria sido suficiente) a prole do rei derrotado. Conviver com aquele dissimulado, muito inteligente e sorrateiro sobrinho, deixando-o tecer sua teia destruidora, pode ter sido atitude muito virtuosa no sentido cristão (dar a outra face), não no sentido grego, ou mesmo “monárquico”… Todo o desfile de personagens que mais se parecem com uma “pasta amorfa” me levou a pensar que talvez o grande vilão (no sentido da herança maldita que sua vida/morte deixou) tenha sido o falecido e tão idealizado Rei (ver próximo texto)! O QUE TERIA ELE FEITO COM O CARÁTER DOS QUE O CERCAVAM? Mas, talvez o grande vilão ali seja a própria MONARQUIA com sua imposição de papéis que aprisionam as pessoas, frequentemente em desacordo com suas disposições fundamentais?

“Os de sua posição não são donos deles mesmos” (Laertes a Ofélia, falando de Hamlet(I-3)

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UM ESPECTRO GIGANTE PAIRANDO SOBRE ANÕES MORAIS!

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Deixemos de lado os aspectos fantasmagóricos da peça, e as aparições generalizadas. Não precisamos deles e acho que nem a tragédia precisava de tantas marchas e contramarchas; aparições e falas até debochadas do “Espectro” e dos outros para com ele! O que seria, então, um grande rei? Aquele que conseguisse fazer mais conquistas de terrenos e povos, espalhando o horror e morte à sua volta ou alguém mais humano e próximo do seu povo; além de aberto à solidariedade e empatia até com os eventuais conquistados? Para responder, nada melhor do que rever algumas sentenças que marcam o auge e a decadência da realeza francesa. Escreveu Luis XIV no bronze dos seus canhões: “O último argumento dos reis!”, sentença que não precisamos comentar. Do seu narcisismo é testemunha também uma outra: “L’ Etat c’est Moi”! Na continuação (início da rápida decadência) disse o “XV”: “Depois de mim…o dilúvio!. Já o “dilúvio”…caiu mesmo foi sobre o pescoço do “XVI”. Por fim, as condutas desastradas da dupla Hamlet/Tio levam-nos a matar quase todos à sua volta e também às suas próprias mortes. E como Hamlet é “moderno” na hora da morte! Em sua fala final, em vez de lamentar o desastre protagonizado, preocupa-se com sua reputação. Ao amigo Horácio: “Que nome deixo?…respira mais um pouco nesse mundo para a todos contares minha história…!** Mas a crítica mais dura aos desastrados vem de um homem de AÇÃO recém chegado, FORTIMBRÁS, o novo rei: “Removei os corpos! Esta vista é própria dos campos de batalha! Neste lugar, porém, é em tudo falha!”.

……………..(CONTINUA)

*Nos dias de hoje, ele teria se declarado “EXISTENCIALISTA” e continuaria vagando pela face da Terra, enquanto outros exerciam sua própria vontade.

**Outro trecho que a tradução de Millor esclareceu: em verdade, Horácio também se dispõe a beber a taça com o veneno (estranhamente, pois não tinha nada com a trama propriamente) sendo demovido pelo moribundo Hamlet com o pedido de que viva para defender sua reputação.

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