Temas e Controvérsias

“NEUROPSIQUIATRIA”: DESCARACTERIZANDO A PSIQUIATRIA COMO ESPECIALIDADE

Em um de seus depoimentos, já mais para o final de sua vida, José Leme Lopes afirmou que, apesar de a PSIQUIATRIA ter se iniciado a partir der uma ligação muito próxima com a NEUROLOGIA, com o passar do tempo, tornou-se uma “árvore muito frondosa”, autônoma e cheia de vitalidade. Com isso antecipava a necessidade de lutar tenazmente contra os que, aproveitando os grandes avanços tecnológicos alcançados na investigação do funcionamento cerebral, tentavam resgatar um termo há muito superado: NEUROPSIQUIATRIA. Significativamente, a imagem do cérebro passou a ser o ícone usado em congressos, livros, e publicações específicamente psiquiátricas.

Hoje, no processo natural de rearranjo dos currículos em muitas Faculdades de Medicina, temos visto ser proposta a criação exatamente de um “BLOCO DE NEUROPSIQUIATRIA” com o objetivo de aproximar o ensino das duas especialidades. Do ponto de vista da própria PSIQUIATRIA, temos a impressão de que isso seria um retrocesso inaceitável. Alguns se conformam dizendo: “É só um nome!”. Mas estou certo de que frases como essa não devem caber entre psiquiatras. Afinal, o elemento central de toda a comunicação é a linguagem. Há sempre que tentar afinar seu uso, adequando-a ao que se busca denominar. Além disso, não é à toa que somos conhecidos por fazer da linguagem um dos nossos mais importantes instrumentos de investigação e intervenção. Se há uma especialidade que deve zelar pela linguagem, é a nossa. Destituídos do instrumento da linguagem, em que vamos nos transformar?

Além disso, é totalmente equivocado pensar no termo proposto como uma simples “aproximação” entre duas especialidades; uma síntese ou coisa parecida. Não! Ela representa uma “terceira coisa” que, até hoje, ninguém conseguiu definir bem. Se alguns colegas se sentem neuropsiquiatras, não há nada a criticar. É uma questão pessoal. Daí a inventar uma nova especialidade, vai uma enorme distância. Tomemos o exemplo da NEUROPSICOLOGIA: um ramo completamente novo, implicando o estudo das relações mente/corpo, em seu funcionamento. Ou seja, é mesmo uma “terceira atividade” que não tem qualquer pretensão de “sintetizar” ou reduzir as duas originais a uma terceira. A partir dela, ninguém está propondo que a PSICOLOGIA e a NEUROLOGIA passem a se chamar NEUROPSICOLOGIA.

O que dizer, então, do menosprezo à subjetividade que temos observado entre nossos colegas e que imperou no último congresso promovido pela ABP? Não percebem, por acaso, que, sem a subjetividade, perderíamos completamente nossa diferenciação? Se reduzirmos os sinais e sintomas—isso deixando de lado a expressão sofrimento psíquico, por ser, para alguns, por demais inespecífico—aos meros circuitos neuronais e à hiper ou hipofunção de algumas vias e sistemas, qual seria nossa diferença em relação a outras especialidades? A PSIQUIATRIA vem sendo assediada a partir dos dois extremos e isso aconteceu porque todos, de repente, se deram conta da impotância do bom funcionamento mental na busca pela homeostasia. Antes, debochavam de nós; agora, querem “tirar casquinhas” do nosso conhecimento acumulado durante décadas. Pois bem, é exatamente nessa hora que muitos entre nós agem como se fossem verdadeiros “Cavalos de Tróia” ou “Amigos da Onça” (é bem verdade que, em tempos de ecologia, todos devemos sê-lo). Preocupados com um “fantasma” da “invasão dos psicólogos” de nossa área, não se deram conta de que estão procurando refúgio em algo que ameaça muito mais a PSIQUIATRIA. Somos médicos e nos orgulhamos disso, mas não precisamos nos humilhar e rebaixar para voltar a uma “casa paterna” de onde, em verdade, nunca saímos. É POR NOSSAS PECULIARIDADES, E (quem sabe?) ATÉ IDIOSSINCRASIAS, QUE TEMOS DESPERTADO TANTO INTERESSE.

Quem pode duvidar dos grandes e recentes avanços na compreensão do funcionamento da mente humana em sua relação com o cérebro? Não podemos mesmo deixar de aproximar as várias formas de conhecimento. Outra coisa muito diferente, porém, seria reduzir o funcionamento da mente ao que se passa no cérebro. Já ouvimos até que o pensamento nada mais seria do que sua “secreção”!

Um outro erro que alguns cometem, esse indubitável e básico, é considerar a existência de um ser humano isolado, quando, até pela nossa condição de dispor de dois hemisférios (com algumas “especializações”) e de neurônios-espelho, somos, no mínimo, seres sociais e divididos. Sofremos, além disso, os efeitos dos valores morais da sociedade. Por tudo isso, há que se considerar, na denominação para essa aproximação neurologia/psiquiatria, uma expressão que abranja a relação mente/corpo em seu funcionamento, incluindo as RELAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS. Infelizmente, o que mais tem acontecido em muitos países,ditos desenvolvidos, é exatamente o contrário: a tentativa de que os seres humanos se tornem cada vez mais semelhantes às máquinas. O que dizer, ainda, da promoção da ruptura de alguns povos com as próprias culturas (índios guaranis, povo inuit no Canadá e na Groenlândia e outros), fazendo com que as taxas de suicídio, entre eles, se elevem a níveis surpreendentes. Será que não há nisso alguma lição?

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ