Arte e Cultura

O “H. SAPIENS” E SUAS MUITAS TRAIÇÕES À TERRA E À NATUREZA

(“A Terra é Mãe, Mas Também Sabe Ser Madrasta”)

QUE A VIDA É TRAIÇÃO…” (“Momento num Café”, M. Bandeira)

Talvez o termo TRAIÇÃO soe por demais pesado para alguns. Ele pode ser substituído por AFASTAMENTO. A questão seguinte haverá de ser:implicaria, esse afastamento, um voltar-se contra (uma traição mais propriamente dita)? Nas situações da vida cotidiana, onde a dimensão das coisas é um tanto mesquinha, é até possível considerar um afastamento sem traição. No caso da nossa relação com a Terra, entretanto, qualquer afastamento há de ser, necessariamente, uma traição (no final das contas, mais a nós mesmos do que ao planeta que nos viu e fez nascer). A rigor, diante dos acontecimentos dos últimos 112 anos—quando os vários impérios (inglês, francês, alemão, japonês, russo, e outros menores à época) começaram a se entrechocar—não há mais qualquer espaço para dúvidas: todos os sistemas de governo, baseados na competição desenfreada, entraram em rota de colisão; não somente entre eles mesmos, mas com a própria Terra.

1ª TRAIÇÃO: o surgimento da própria vida!

Com a beleza e elevação que lhes eram peculiares, os gregos viram na vida em si uma espécie de “traição à natureza”, pela qual estaria sempre condenada a pagar: “De onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm que pagar penitência e ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do tempo.(Anaximandro, a partir de tradução de Nietzsche)

Há nessa linguagem algo que, a um só tempo, impressiona e causa incômodo. Não gostamos da não apreensão racional e plena de algum significado que nos invada à nossa revelia. Quando isso ocorre, sentimos que, ao contrário, fomos nós os apanhados e aprisionados pelas palavras*. É assim com as coisas mais elevadas: atingem-nos acima (ou abaixo) da RAZÃO, sem que as possamos reduzir para caberem na estreiteza de nossas mentes.

Muitos verão nisso apenas uma mistificação e ficarão por aqui. Não é meu objetivo convencer ninguém, mas, agora que já leram as palavras de Anaximandro, nem mesmo esses conseguirão ficar imunes ao seu efeito. Há tanta coisa, neste mesmo momento, “trabalhando” dentro de nós, independentemente de nosso próprio conhecimento! Aliás, o afã de conhecimento e controle racional é, na verdade, apenas uma resistência às mudanças sobre as quais não temos qualquer controle: as melhores e mais importantes; que acontecem à revelia da Razão. “Você diz que vive a vida! Não! É a vida que vive em você!”(Nietzsche)

O poeta M. Bandeira (“Momento num Café”), teve inspiração parecida à do grego, enquanto assistia à passagem de um féretro:“…Que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição/E saudava a matéria que passava/ Liberta para sempre da alma extinta”

Nosso povo, aliás, tinha também uma clareza intuitiva dessa luta permanente entre a vida e a morte. Por isso, passou a se valer do termo “vingar” quando da sobrevivência de alguns seres, certamente depois de muitas “derrotas”. Enfim, uma criança (ou uma plantinha) vingara (depois de muitas terem sido levadas pela “indesejada das gentes”)! Até a frase emblemática do cristianismo: “MORTE! ONDE ESTÁ SUA VITÓRIA?!”—referindo-se à Ressurreição—pode ser ampliada (ou reduzida) à vida em geral, sempre renovada e afirmativa: às muitas Fênix que tornarão a ressurgir das cinzas; às muitas Auroras que ainda estão por vir e às muitas luas que, um dia, haverão de voltar a marcar o tempo para nós, como faziam para os índios.

2ª TRAIÇÃO: o surgimento da consciência de si mesmo!

Dessa mesma vida, um dia, brotou, em algumas poucas espécies—e em cada um dos seus membros—a consciência individual de si mesmo, coisa que, entre os humanos, tende a surgir por volta dos 2 anos de idade (caracterizada pela auto-observação prolongada no espelho e testes individuais de gestos e mímica). Era um novo salto, bem para além das muitas outras diferenciações anteriores (surgimento de seres multicelulares; separação vegetal/animal e a reprodução sexuada). Essa tomada de consciência de nós mesmos, individualmente, elevou-nos a paragens inimaginadas, mas aprofundou o abismo no qual estamos arriscados a cair.

3ª TRAIÇÃO: capacidade de abstração, conceituação e intervenção

Estava preparado o caminho para o surgimento da capacidade de abstração e tomada de posse da Terra, a partir da formulação de conceitos para a maior parte dos fenômenos. Nunca antes, a traição à natureza fora tão grande! Surgira a possibilidade (e o perigo) dela se tornar bem mais do que um mero afastamento: com a ilusão da posse, voltamo-nos contra a própria Terra. Estava plenamente configurada a traição de que os gregos haviam falado. Deixamos de fazer simplesmente parte de um equilíbrio, e começamos a criar ambientes muito diferentes daqueles que a natureza oferecia. Era inevitável ocorrer alguma tomada de posse e, em alguns casos, até boa, quando à maneira dos escandinavos: respeitosamente. Em outras paragens, entretanto, o que imperava, e ainda impera, era um uso como se a natureza fosse apenas uma fornecedora de insumos para alimentar a vaidade, ambição e ignorância de alguns “privilegiados”, apenas do mesquinho ponto de vista material, é claro.

Se, até então, as frases dos gregos mais se pareciam com abstrações de poetas, inalcançáveis aos meros mortais, agora, os efeitos desse conflito com a natureza passaram a se fazer sentir em uma nova dimensão. O alerta do Chefe dos índios Kiowas, Satanta (1870), finalmente, atingira todos os povos da Terra: “…Esses soldados cortam minha madeira, matam meu búfalo e, quando vejo isso, meu coração parece se partir; fico triste…Será que o homem branco se tornou uma criança que mata sem se importar e não come o que matou? Quando os homens vermelhos matam, é apenas para viver”(“Enterrem meu Coração na Beira do Rio” Dee Brown).

A Europa se afirmou, durante a Idade Média, brigando e destruindo a natureza (atitude depois “exportada” para boa parte da África); os EUA não conseguiram se libertar do espírito que os levou a massacrar um povo de bravos, e continuam escravos da mesma soberba e do “Darwiniamo Social”. Será que nós, aqui no Brasil, construiremos um novo caminho durante o nosso crescimento? Se assim for, ainda daremos um VIVA àquilo que, um dia, foi chamado de “atraso”. Quem sabe diremos: tivemos apenas um pouco mais de tempo para aprender com os erros dos demais? Conseguiremos crescer sem nos tornar escravos de máquinas; sem perder a dimensão humana e, antes de tudo, sem perder a solidariedade e a alegria que gosta de incluir outras pessoas e povos?

4ª TRAIÇÃO: conquista espacial e a ilusão de sobreviver à própria Terra.

Estava dada a senha para que, na cabeça dos mais arrogantes, todo o nosso velho planeta começasse a ser pensado como algo descartável e com “prazo de validade”. Poderiam agir, para com todo o globo, da mesma maneira como haviam feito em relação a partes dele: espoliar, destruir e, depois,…deixar para trás, abandonar. Assim andam pensando alguns tolos que gostam de “experimentar muitas coisas novas”—viagens turísticas ao espaço, por exemplo—mas sequer pensam sobre elas: meros joguetes da própria vaidade.

Da primeira vez em que o homem se libertou da gravidade terrestre, o feito foi saudado como uma grande conquista de toda a humanidade. Logo, porém, os devaneios dos ficcionistas, que imaginavam a vida do homem independentemente da sua ligação com a Terra, ganhou dimensão de possibilidade. Alguns tolos, sabendo que a estrela que nos aqueceu e deu vida, vai, um dia, perder força inexoravelmente, encontraram nisso uma falsa “justificativa moral” e “objetiva” para investimentos. Seriam os “salvadores da humanidade”, pois produziriam novas colônias de humanos fora da Terra.

O mito de NOSFERATU—o vampiro que estava condenado a não morrer—ganhou nova dimensão e “vitalidade” (se é que essa palavra pode caber). Se, em sua o origem, fazia uma alegoria à situação da nobreza européia que teimava em não querer desaparecer, agora estava iniciado o processo que pode, um dia, levar à criação de “nosferatus cósmicos”: seres literalmentedesnaturados, vivendo como os pobres animais que eles mesmos mantém (e torturam) em seus laboratórios. Mas tudo isso há de estar muito distante e, da maneira como temos vivido, é bem provável que a natureza, de mãe, torne-se madrasta e tudo seja destruído bem antes que o processo natural de apagamento do sol siga seu curso.

EPÍLOGO: A DANÇA DOS FANTASMAS

Quando não havia mais qualquer possibilidade de preservação de suas terras e de sua cultura, os índios da A. do Norte também saíram à busca do seu Messias, encontrando-o, curiosamente, entre os índios “paiutes” (comedores de peixe). Muito tinham já ouvido falar em Cristo e alguma identificação parece ter havido entre eles: “…mas os brancos haviam-no tratado mal, deixando cicatrizes em seu corpo e, assim, ele voltara para o céu. Agora, retornava à Terra como índio e iria renovar tudo como era antes e tornar tudo ainda melhor…” (“Enterrem Meu Coração…”). Não tiveram tempo para que um “novo Saulo” transmutasse tudo em seu oposto. À maneira de Platão, os índios também acreditavam em um mundo independente, dos espíritos. “Urso Saltador” e seus amigos “aprenderam” várias canções do mundo espiritual que serviriam para uma certa“…Dança dos Fantasmas que se espalhou entre os índios como um incêndio na pradaria sob um vento forte”.

Pensar na possibilidade de nossa existência independentemente da Terra que nos deu vida (e também do Sol) haverá de nos colocar em situação muito parecida com a provocada entre esses “índios crepusculares”. Quem sabe conseguiremos encontrar ao menos uma dança para expressar a demência que implicaria sobreviver totalmente sem raízes?! Seria um último ato de afirmação da liberdade. Sem dúvida, é a dança a única forma de expressão (artística ou não) SEMPRE ASSOCIADA À LIBERTAÇÃO. Talvez porque implique a libertação do próprio corpo em busca da estética. Até a música foi usada em função da barbárie e da opressão (por várias vezes, em um mesmo dia, os nazistas marchavam sob marchas militares). Essa deve ter sido a razão para a perseguição a toda forma de dança por séculos na Europa. Até os Cantos Gregorianos são um último esforço para abolir o ritmo. Por isso, parecem-se tanto com intermináveis gemidos.

Quem perseguira a dança em seu continente de origem não haveria de tolerá-la sob sua ocupação. E veio a palavra oficial do novo governo: “Parem a Dança dos Fantasmas!…Os índios estão dançando na neve, estão selvagens e dementes…Precisamos de proteção. Os líderes devem ser presos e confinados…até que o problema diminua…”. (telegrama para Washington). Dias depois, “no quarto dia do Natal de 1890, os corpos dos índios massacrados foram carregados para a Igreja…”! Que,um dia, encontremos pelo menos sua grandeza ao morrer!

A TERRA É MÃE, MAS TAMBÉM SABE SER MADRASTA!

Dá calor e confiança,

Solo firme e esperança

Prá uma espécie tão ingrata

Que, na mesquinhez do dia a dia,

Sem saber o que faz,

Mais e mais dela se afasta!

A Terra é mãe, mas também sabe ser madrasta!

Por milagre, foi um dia

Tanta beleza reunida

Num só ponto do Universo!

E desse sopro de harmonia

Uma gente suicida

Faz um uso tão perverso!

Pensa que a tecnologia

Salva tudo, inventa a vida

Mas eu penso o inverso!

Falta Humildade e Poesia

E a elas é devida

Cada palavra e cada verso!

Mas, um dia, a Paciência se desgasta,

A esfera rosna, treme toda e dá um Basta!

A Terra é Mãe, mas Também sabe ser madrasta!

*Foi Sócrates o primeiro a separar as idéias que geram uma Doxa (opinião) dquelas que provocam Pathos (sentimento)No primeiro caso, tornamo-nos “senhores”. No segundo, ficamos na posição do que sofre e apenas sente. Somente nesse último caso, a Filosofia teria atingido verdadeiramente uma pessoa.

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