Temas e Controvérsias

REPÚBLICA DE DEPENDENTES: INSPIRAÇÃO TERAPÊUTICA OU JURÍDICO-POLICIAL?

(Tolerância Zero...?! Terapêutica Abaixo de Zero!)

Quando lemos a proposta da criação em SP (Fl de SP, 23/jan; UNIAD-UNIFESP) de “repúblicas para jovens dependentes de substâncias”, pensamos de imediato: “Eis uma boa idéia!”. A leitura de seu código “endurecido” de funcionamento,  entretanto, gerou sérias desconfianças de que sua inspiração é mais judicialista do que terapêutica: à primeira infração—do impedimento de uso de álcool ou outras substâncias—o paciente seria eliminado do programa e seriam, ainda, feitas verificações laboratoriais e periódicas para identificar possíveis descumprimentos daquela regra.

Todos os modelos de intervenção para a recuperação de pessoas dependentes de substâncias partem de duas inspirações possíveis: 1- a partir do olhar das pessoas ligadas primariamente à saúde e, 2- a partir de membros da Justiça. Os papéis são diferentes, mas seus objetivos podem ser muito parecidos. Aquilo que não nos parece razoável é ver pessoas formadas na área da saúde aplicando princípios, projetos e discursos que ficariam muito mais adequados a pessoas oriundas da Justiça. Há nisso uma submissão inaceitável. Houve um tempo, em que a Justiça aceitava papel secundário em questões da saúde. Hoje, tenta ser protagonista e muitos dentre nós, por razões diversas e nem sempre muito virtuosas, aceitaram a quase figuração.

Se consideramos o uso de substâncias uma condição clínica e o incluímos nas nossas classificações, por definição não podemos agir como se os pacientes dele sofressem por escolha e devessem ser punidos por suas manifestações. Seria cair numa insanável contradição. Toda a nossa atividade precisa, então, ser voltada ao acolhimento e criação de dispositivos que aumentem esse acolhimento (sem perder de vista, é claro, o risco que sofremos de manipulação anti-terapêutica por parte dos usuários). Toda ação por nós empreendida precisa ser marcada pela disposição a sempre oferecer novas oportunidades àqueles que estiverem dispostos a aceitar uma intervenção terapêutica em seus vários níveis possíveis. Há que não perder de vista, ainda, a dificuldade que os usuários teem (em um primeiro momento, pelo menos) para aceitar e se enquadrar nesses dispositivos. Como costuma ser repetido “ad nauseam”, só o amor constrói, e nosso desafio é encontrar, até mesmo nas nossas atitudes mais duras, esse sentimento pelas pessoas, sejam quais forem as suas condições no momento. Se não as amamos em seus momentos mais difíceis, por que haverão de nos agradar tentando se aproximar daquilo que acham que queremos?

Já as intervenções referenciadas ao que chamam “justiça terapêutica”¹ iniciam-se a partir da determinação de um juíz , podendo gerar penas alternativas. Para essas, como são determinações superiores e representam uma vantagem direta e condicional, é natural que a prática e o discurso sejam aqueles.
Em relação à proposta e ao discurso apresentados, será que seus organizadores pensaram em algumas das suas possíveis consequências?

1- consideraram que é imprescindível, na relação cuidador-paciente, o desenvolvimento de confiança mútua e que, sendo ele mesmo o responsável pelas “medições”, vai ser, inevitavelmente, gerado um clima policialesco incompatível com a terapêutica?

2- consideraram o risco da indução à corrupção (e do próprio tráfico), na medida em que é atribuído a uma pessoa um excessivo poder?

3- consideraram a possibilidade dos “falso-positivos” e a necessidade de contra-provas? Estará abolido nessa “república” o direito constitucional vigente na República do Brasil de não fornecer provas contra si mesmo?

4- considerando que as pessoas organizam suas vidas em torno de um lugar de moradia, como seria o “despejo” daqueles que burlassem a regra? É legal simplesmente atirar as pessoas na rua? O compromisso com as pessoas encerra-se assim, imediatamente? Não há nenhum dispositivo intermediário? E se ocorrerem tentativas de suicídio deflagradas pelo despejo?

Há , efetivamente, muitas dúvidas em relação ao projeto.  Seu risco de se tornar, não somente pouco terapêutico, como também desumano, é considerável. Uma matéria de jornal não visa tudo esclarecer, mas os responsáveis pelo projeto são também responsáveis pela matéria veiculada. A inspiração nas “sober houses” norte-americanas não nos parece dar reforço algum ao projeto, uma vez que, no país da “tolerância zero”, há um império da mentalidade policialesca nessa área.

¹Se há algum papel “terapêutico” na Justiça, ele se prende às sociedades em geral e não a casos clínicos individualizados. Estamos convencidos de que a não elucidação de alguns crimes muito traumáticos (assassinatos dos Kennedy, Luther King e outros) gera uma forte sensação de “adoecimento” em uma sociedade.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ