Temas e Controvérsias

O PRINCÍPIO DO PRAZER, O “PRINCÍPIO DO PODER” e o TEPT

(Baseado em "Nietzsche e o Nascimento da Psicanálise"- Márcio Amaral)

A defesa por S.Freud de um “Princípio do Prazer” como o maior determinante da conduta dos seres humanos em geral, amesquinhava a humanidade e não fazia jus à própria grandeza da obra freudiana. A idéia não era nova, mas ganhou ares de ciência a partir de então. Até hoje, muitos daqueles que se dizem seguidores do criador da psicanálise continuam a falar no prazer como um “princípio”, mesmo depois de seu abandono pelo próprio Freud, quando escreveu seu “Além do Princípio do Prazer”. É fato bastante frequente entre os psicanalistas, que as formulações antigas do mestre convivam com as mais novas (ver os modelos para o aparelho psíquico), mesmo depois de superadas. Há nisso algo de qu ase religioso: os “novos testamentos” continuam a conviver com os “antigos”.

Como explicar, aplicando aquele “princípio”, os mais elevados atos de afirmação moral da humanidade, especialmente entre o povo judaico, na sua luta pela preservação de sua própria identidade religiosa e cultural? Como entender a afirmação da própria fé entre os primeiros cristãos e seu enfrentamento das maiores torturas e humilhações, se, em cada um de nós, imperasse o tal “princípio”? Não! Havia mesmo algo muito para além (ou para aquém, na medida em que um verdadeiro princípio é sempre anterior e mais firme) do prazer como um princípio.

A crise moral por que passou Freud, nos anos que se seguiram à primeira Grande Guerra (E. Jones), é de difícil mensuração e a obra citada é sua herdeira. Todas as suas últimas ilusões, com relação ao papel da nações desenvolvidas, na promoção da paz, da harmonia e do desenvolvimento, tinham ruído diante do choque entre os diversos imperialismos em várias frentes no mundo. Além disso, uma de suas filhas, que alguns diziam ser sua preferida, morrera durante o conflito. No terreno da clínica, como explicar as manifestações observadas entre ex-combatentes (típicas do que hoje denominamos Tr. de Estresse Pós-traumático) partindo do prazer como um princípio? A própria idéia do sonho como realização de desejos também caíra por terra, diante dos sonhos aterrorizantes, das rememorações e dos ataques de ansiedade frente a ocorrências corriqueiras que pudessem disparar as lembranças “traumáticas”. Tudo deveria ser revisto e Freud o fez, usando, para isso, a singela observação da conduta (em verdade, um jogo) do próprio neto.

Sempre que sua mãe, a quem era muito apegado, saía do seu raio de visão, o menino começava a brincar com um carrinho amarrado a um barbante, lançando-o também para fora de sua visão. At o contínuo, o menino puxava lentamente pelo cordão, até o surgimento do carrinho, dizendo: “Aqui!”, assim que ele reaparecia. Com isso, ele lograva:”…elaborar psiquicamente algo impressionante, conseguindo seu total domínio, independentemente do princípio do prazer… Vê-se assim, que os meninos repetem, nos seus jogos, tudo aquilo que, na vida, lhes causou uma intensa impressão, tornando-se donos das situações…Antes, representavam um papel passivo, que é trocado pelo ativo. Esse impulso, poder-se-ia atribuir a um INSTINTO DE DOMÍNIO¹, independentemente da recordação ter sido penosa ou não” (Além do…). Freud, finalmente, rendia-se a Nietzsche: “Onde encontrei vida, ali encontrei Vontade de Potência” (“Assim Falou Zaratustra” – da vitória sobre si mesmo).

Também a TENDÊNCIA À REPETIÇÃO, observada em todos nós (especialmente nas crianças e em certos pacientes psiquiátricos) poderia ser entendida a partir desse último princípio. Enquanto, através dela, as crianças apurariam suas habilidades de domínio, os adultos obteriam, com essa repetição, uma nova oportunidade para elaborar as experiências, por mais penosas que possam ter sido. Afinal, somente a partir de alguma elaboração nossa, podemos dizer que algo experimentado passou verdadeiramente a fazer parte do patrimônio que são nossas próprias experiências. Somente assim, passam a “nos pertencer” e enriquecer. Até lá, e enquanto não o conseguimos, ficamos reféns de acontecimentos que retornam, como uma espécie de “corpo estranho”, do qual tentamos, de maneira infrutífera, “nos livrar”.

Na medida em que toda experiência marcante nos torna um pouco diferentes, parece haver (nessa não incorporação e “metabolização” do experimentado) uma resistência a mudanças em geral. Por outro lado, boa parte das condutas perversas e predadoras poderiam ser também explicadas por essa necessidade imperiosa de exercer alguma potência, uma vez que, para algumas pessoas, a única forma encontrada para sua expressão seria através da destruição e/ou submissão de outras pessoas.

Um engano muito repetido, é tratar aquela “Vontade de Potência” como algo relacionado somente às situações grandiosas e à dominação de outros povos ou pessoas. Não! Ela vale também para as experiências mais comesinhas, incorporadas a partir das vivências mais variadas. Só assim mantemos uma certa ilusão de controle frente ao mundo (até o próximo “tsunami”, pelo menos), imprescindível para levar a vida em frente. Dessa forma, qualquer esforço para “apagar uma lembrança”, por pior que ela possa parecer, corresponderia a um empobrecimento: “O que não me destrói me fortalece” (Nietzsche). É o que discutiremos no próximo texto, mais dedicado aos desdobramentos clínicos dessas palavras e sua possível relação com o TEPT.

¹ Apesar de ser esta a tradução mais frequente, “Bemächtigungstrieb” (no original) sugere mais IMPULSO DE DOMÍNIO do que propriamente instinto.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ