Temas e Controvérsias

RESILIÊNCIA E AFETOS “NEGATIVOS”: UMA APOLOGIA DA ALIENAÇÃO?

"Aquilo que não me destrói, me fortalece" (F.Nietzsche)

Pode-se utilizar a dimensão positivo/negativo em pelo menos três sentidos: 1-presente/ausente; 2-do negativo fotográfico; 3-no sentido (mais comum entre os leigos) de VALOR mesmo (“bom versus ruim”). Considerando que, em ciência, tudo tem valor, mesmo as tentativas frustradas e fracassadas, esse último uso é muito perigoso e costuma depor contra a profundidade intelectual de quem o aplica. Afinal, por que chamamos “ensaio e erro” o método fundamental e original de toda experimentação (não somente a controlada, mas também todas as nossas tentativas mais primitivas)? Pela simples razão de que a abertura de novos caminhos de investigação IMPLICA a ocorrência de muitos erros iniciais. Imaginar um estranho “ensaio e acerto” exigiria que fôssemos ungidos por de uses ou se andássemos em círculos, a rigor, sem fazer ensaio algum, somente repetindo o previamente conhecido.

Diríamos mais: é o erro que abre novos caminhos. Se um auxiliar de Pasteur não tivesse errado, ao não inocular um antígeno em galinhas antes de sair de férias (fazendo-o somente vários dias depois), não teria observado o efeito de imunização dessas mesmas galinhas. Contrariamente ao esperado, elas não morreram naquela inoculação, e nem nas inoculações posteriores. Um “erro” apontou o fundamento para as vacinas. Mais do isso, é possível, ainda, que alguns de nossos “erros” nada mais sejam do que “atos falhos”, ou seja: a expressão de alguma intuição apontando novos caminhos.

A adaptação do conceito de RESILIÊNCIA—originário da física—à psicologia: capacidade dos corpos para readquirem a forma inicial¹ após sofrimento de pressão variável, é muito interessante e poderá render bons frutos. Sua associação, porém, à classificação dos afetos em “positivos e negativos”, faz temer pelo seu futuro, uma vez que é indissociável de um julgamento de VALOR dos afetos. Há nisso uma apologia da alienação. A avaliação dos afetos IMPLICA sua relação com o meio e com as situações da vida. Por definição, não há afetos positivos e negativos em si. Qual seria o afeto “positivo”, diante de um ambiente perverso, no qual as bases objetivas e morais para a vida estivessem solapadas? Diante da tortura, por exemplo? Sorrir e dizer: “acredite que tudo vai melhorar e, assim, você vai se sentir melhor”? Como seriam classificados os afetos de raiva e revolta, por exemplo, sem que se considerem as circunstâncias em que surgiram?

O aparecimento de uma certa PSICOLOGIA POSITIVA, associada a esse movimento, faz supor que o culto à superficialidade tem feito avanços preocupantes. Antes de mais nada, seus defensores teriam de abolir os princípios da DIALÉTICA, segundo os quais, nada sequer existe sem o seu contrário. Somente desenvolvemos os afetos que eles chamam de “positivos” PORQUE temos dentro de nós os assim denominados “negativos”. É nesse conflito permanente, entre as duas tendências, que a crença na vida e a esperança se exercitam e reforçam (ou não). Sem isso, haveria um abismo intransponível entre as pessoas “positivas”e as “negativas””. Em verdade, seríamos caricaturas de seres humanos, sem interesse algum ou interessantes apenas como personagens cômicos. Poucas vêzes a sentença de Pascal foi tão pertinente: “Não nos sustentamos na virtude pela nossa própria força, mas pelo contrapeso de dois vícios opostos, como ficamos de pé entre dois ventos contrários. Tirai um desses vícios e cairemos no outro”. B. Pascal- Pensamentos, 359

Estariam, algumas correntes do pensamento, em psiquiatria e psicologia, a caminho da produção de livros de auto-ajuda (melhor denominados de “autoatrapalhação”)? Pensando bem, seria uma tristeza, se, em vez de a ciência contagiar a abordagem das situações dramáticas vividas pelos leigos, ocorresse exatamente o contrário: o que há de mais superficial na atividade intelectual das massas, arrastar as pessoas que se esforçam por fazer ciência.

Tentando sair do mais comesinho: a ser válido o esforço para eliminar, ou diminuir a expressão dos afetos “negativos”, o que faríamos com todo patrimônio cultural que fez a glória do mundo ocidental? O que fazer com as tragédias que os gregos nos legaram e com o lirismo e crueza do martírio cristão? Fiquemos somente com as tragédias. Como explicar sua universalidade e atualidade, senão por sua importância enorme na “economia mental” das inúmeras gerações que as seguiram? Seria possível, então, simplesmente dizer “V. não deve a assistir essas peças, pois elas estão cheias de afetos negativos e vão lhe fazer mal”? Que “novo ser humano” é esse que alguns estão tentando criar com esse culto à superficialidade?
A segunda questão, então, passa a ser: qual é essa importância? Há pelo menos duas tentativas de explicação para a importância psico-socio-cultural das tragédias:

1- A de Aristóteles—de natureza muito pouco artística e estética—que defendia seu papel de catarse dos maus sentimentos; uma espécie de vazadouro ou esgoto moral das perversões.

2- A de Nietzsche (“O Nascimento da Tragédia”) segundo a qual, e por um excesso de vitalidade na cultura grega, a tragédia seria uma afirmação da vida em quaisquer circunstâncias; seus autores e platéia não precisavam se alienar das mazelas da vida para achá-la bela. Em qualquer circunstância e situação, a vida sempre se afirmaria.
Considerando que somos consultados, quase sempre, em situações extremas, e que surgimos, como profissão, a partir das situações extremas da vida, não temos o direito de ser superficiais. O que dizer, então desse culto à superficialidade como um valor a alcançar?!

¹Em verdade, esse retorno é apenas aparente, uma vez que não existe “caminho para trás” no tempo e nada volta a ser como antes, nem na psicologia, nem na física. 

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ