Arte e Cultura

ALEGORIAS DO BRASIL-II: SEMANA DE 1922 E AFIRMAÇÃO

(E então, um grupo de jovens intelectuais finalmente descobriu o BRASIL)
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“…Mostraram ao mundo o perfil do brasileiro/Malandro, bonito, sagaz e maneiro/Que canta e dança, pinta e borda e é feliz/E assim transformaram os conceitos sociais…” Samba enredo da ESTÁCIO DE SÁ, 1992: “70 anos da Semana de Arte moderna”.
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“No texto anterior (“ALEGORIAS DO BRASIL”-I) discuti a tendência dos auto intitulados intelectuais a atribuir aos seus congêneres de outras épocas (e não aos movimentos dos próprios povos) a origem dos grandes acontecimentos da cultura em geral. Tudo se passaria como se a vida de um povo e sua cultura girasse em torno de suas (deles) ideias. Em verdade, o processo é exatamente o contrário: enquanto falsos intelectuais repetem suas asneiras muito pomposas, as criações populares (música, poesia, dança, artes plásticas) seguem seu próprio rumo e curso sem deles tomar conhecimento. Um dia, finalmente, um grupo de jovens arrebatados e com espírito revolucionário—depois de muito sofrer com o bolor do academicismo—como que descobre seu próprio povo, tornando-o  a fonte de sua maior inspiração. Há vários exemplos do fenômeno na história (o “Impressionismo” francês é o melhor), mas poucas vezes foi tão evidente e bem demarcado quanto o que se passou na cultura brasileira em torno e a partir da SEMANA DE 1922. Por isso, ela é talvez o acontecimento cultural mais importante de nossa história. Não somente pelo que ali ocorreu, mas também pelos seus desdobramentos. O maior deles foi a tomada do PROTAGONISMO (em toda a nossa cultura) pela gente mais simples do povo: a identificação do que é ser brasileiro a partir das manifestações culturais de nosso povo. Mas não faltaram depoimentos no bom documentário para associar a ORIGEM dessa manifestações à SEMANA DE 1922. Alguns “intelectuais” são mesmo incuráveis. Bem melhor é a visão dos sambistas da ESTÁCIO sobre a “SEMANA”: reconheceram o que já havia; mostraram ao mundo quem verdadeiramente já éramos e, com isso, obrigaram a uma total mudança nos “conceitos sociais”.
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O. BILAC: DE “PRÍNCIPE DOS POETAS” PARNASIANOS A “BELO ADORMECIDO”
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“…Lasciva dor, beijo de três saudades,/Flor amorosa de três raças tristes…” (“Música Brasileira”, O. Bilac). Como ignorar o choque entre o “Lasciva” e o “Flor amorosa”? Uma associada ao “despudor e desregramento”; a outra ao mais lírico e terno dos amores. Pobre Bilac..pobres parnasianos! Tão distantes do Brasil!
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“CARNAVAL”, DI CAVALCANTI (1897-1976)

Quando  morreu (1918), Bilac era uma unanimidade quanto à importância da sua poesia, mas não somente. Três anos depois, quase não mais se falava dele e de todos os assim chamados PARNASIANOS, aqueles que faziam de sua arte algo parecido com um  “lavor do joalheiro” (deboche contido no poema “Os Sapos”* de M. Bandeira). Precisaram de algumas décadas para voltar a despertar interesse. Nada ilustra melhor a origem desse súbito ocaso do que o “Prefácio Interessantíssimo” (em “Pauliceia Desvairada” de M. de Andrade, 1922): “…Mas todo este prefácio, com todo a disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi “Pauliceia Desvairada” não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei… Eu vivo!”. 

O. Bilac, aliás, parece já anunciar a decadência, não somente a sua própria (uma bela e lírica decadência), mas de toda uma era.  Enquanto lamentava ter que escrever através da “Última Flor do Lácio” (língua portuguesa que chamou de inculta** e bela), outros encontravam cada vez mais orgulho dessa mesma língua, cultivando-a de múltiplas maneiras, especialmente através da música.
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“ESPLENDOR E SEPULTURA”? UMA CASCA SE QUEBRANDO!
Quem pode negar as belezas de “A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO”? Está entre os mais belos poemas já escritos e não somente em nossa língua. Mas também como negar suas contradições profundamente dramáticas? Como associar aquelas duas palavras, senão pensando no seu (de Bilac) próprio “ESPLENDOR”, junto ao povo de língua portuguesa e uma “SEPULTURA” em relação à possibilidade de alcançar o mundo, contrariamente ao que acontece à poesia escrita em francês, inglês, alemão e até em castelhano?! Curiosamente, a associação os dois poemas citados resolve o problema: foi nossa música que retirou (e o processo não acabou) o nosso português daquilo que ele chamou de “sepultura”! Cada vez mais, em todo o mundo, nossa cultura vai se impondo e um dos seus veículos há de ser a língua. Já em relação aos estrangeiros, acho até que estão em inferioridade: enquanto nós temos acesso à sua grande poesia, eles ainda não foram apresentados, por exemplo, a alguns dos maiores poetas da primeira metade do século XX: Bandeira, M. de Andrade, Cecília, Quintana e outros.
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DI CAVALCANTI ESPLENDOR E “RENASCIMENTO”
Devo àqueles CURTAS uma nova dimensão da obra de DI CAVALCANTI! Ninguém representou e reafirmou tão bem o esplendor irresistível do elemento negro na nossa cultura. Aquilo que rondava todas as melhores expressões brasileiras; que se impunha nas ruas, nos bares, botecos, becos e terreiros…finalmente se impôs sob a forma da “grande arte”, e sem ceder a ela um milímetro da sua essência muito popular. Por mais que M. de Andrade escrevesse os seus “Poemas da Negra”; que Bandeira exaltasse o falar errado do povo “…língua certa do povo…” e outras manifestações de amor, ninguém sentiu vibrar tão profundamente dentro si mesmo a vida da nossa gente quanto Di Cavalcanti. Curioso é que ele teria nascido na casa que pertenceu a J. do Patrocínio, líder negro e abolicionista, com quem teria algum parentesco distante. E foi com um pouco de vergonha que mergulhei em sua obra! Vergonha, aliás, da minha própria ignorância.
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*A outra alegoria (associando PRÍNCIPES e SAPOS) é que um dos acontecimentos que selaram a derrocada parnasiana foi a leitura pública do poema tão debochado e tão profundo de Bandeira “OS SAPOS”: “Enfunando os papos/Saem da penumbra/Aos pulos, os sapos/A luz os deslumbra/O sapo-tanoeiro/Parnasiano aguado/Diz: –“Meu cancioneiro/É bem martelado/ …Brada em um assomo/O sapo tanoeiro/”A grande arte é como /O lavor do joalheiro…”.
**Essa palavra eu gostaria muito de que alguém tivesse dele cobrado o sentido com que foi utilizada. 
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ