Temas e Controvérsias

AMNÉSIA RETRÓGRADA (ou “de longa duração”)

Esta é uma expressão que vem sendo utilizada com frequência nas publicações voltadas ao estudo das demências em geral. Há nela há pelo menos dois erros conceituais. Comecemos pelo último. A expressão correta, nesse caso, seria LONGO PERÍODO, uma vez que esse é o termo para designar contagem de tempo, da mesma forma que EXTENSÃO refere-se ao espaço. Em princípio, toda amnésia de origem orgânica (nas quais se perdem registros previamente consolidados) é de muito “longa duração”, até porque, sendo irreversível, há de durar por toda a vida da pessoa. A amnésia é permanente, mas o período ao qual se refere é variável (lacunar ou massiva).

O erro assinalado decorre da perda do bom conceito para amnésia retrógrada, que implica deslocamento progressivo no tempo: se para trás, retrógrada; se para a frente, anterógrada. O próprio significado do sufixo é já uma indicação para o conceito: gradual, gradativo, gradiente (perda por gradiente, no tempo: Regra de Ribot). Talvez porque as amnésias retrógradas costumem gerar, já no seu início, perda importante e para longos períodos, deve ter havido a confusão do seu uso como se ela fosse sinônimo de amnésias para longos períodos. Por isso, afirmamos que uma amnésia decorrente, por exemplo, de um TCE (vencida a fase aguda), e por mais longo que seja o período perdido (maciça ou massiva), não deverá ser chamada de retrógrada. Se toda amnésia retrógrada tende a se expandir e se tornar massiva, o oposto não é verdadeiro.

Quando falamos nos critérios para a classificação das amnésias, dizemos: 1-segundo a extensão (ou período, como preferimos): lacunares X maciças (ou massivas); 2- quanto à origem: organogênicas X psicogênicas; 3- quanto à reversibilidade: irreversíveis (todas as organogênicas) X reversíveis (as psicogênicas); 4- quanto à qualidade: paramnesias fantásticas¹ X confabulatórias; 5- quanto ao sentido de deslocamento no tempo: anterógrada (se para a frente) X retrógrada (se para trás).

Espera-se que todo pesquisador e estudioso busque um aprimoramento permanente da linguagem e isso implica uma melhor especificação de conceitos. Todos sabemos que os norte-americanos, com sua “objetividade”, não gostam de “perder tempo” com certas “filigranas”, mas, curiosamente, dentre os livros modernos, foi no Kaplan e Sadock (2005, p. 986) que encontramos a melhor aplicação do critério aqui defendido: “…extending backward in time for variable periods” (Yager and Gitlin). Quando os pesquisadores da área mais e mais importância dão à memória, é de se esperar também que se esmerem na boa conceituação de seus distúrbios.

Por fim, um outro erro conceitual decorrente dos acima discutidos. Alguns autores não consideram a desorganização temporal dos fatos (típica das amnésias retrógradas) critério suficiente para caracterizar uma amnésia. Sabemos que alguns pacientes se lembram de fatos esparsos, mas não os conseguem situar no tempo. Daí a tratar a memória (fenômeno que se dá eminentemente no tempo) como se fosse um armazém onde se pudesse retirar “gêneros” ao acaso e passivamente (os tais registros foram, certamente, “lembrados” passivamente) vai uma distância enorme. Só podemos falar em memória hígida, quando ela organiza as experiências, propiciando narrativas coerentes e compartilhadas (pelo menos em alguns casos).

¹ Eis mais uma expressão totalmente deslocada de contexto. Por definição, não há nada de fantástico em ciências naturais. Todo o esforço dos filósofos e cientistas, desde Aristóteles, foi exatamente o de tornar o que era “fantático” em algo compreendido a partir das suas relações. Tratam-se apenas de paramnesias delirantes.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ