Temas e Controvérsias

AS ALUCINOSES E SEUS MÚLTIPLOS E DÍSPARES CONCEITOS

(Deve ser aplicada a um QUADRO, não a apenas UMA falsa percepção)
Wernicke
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O maior desafio para aqueles que se aventuram na PSICOPATOLOGIA é fazer uma boa delimitação da miríade de termos e conceitos ali utilizados. Por isso, estou convencido da necessidade de se fazer uma verdadeira “PODA” em certas “ramificações” que só servem para confundir. São tantos os autores que tentam ser reconhecidos por um novo termo ou expressão! Se eu for lembrado por ter ajudado a superar e eliminar muitos desses termos mal aplicados, ficarei satisfeito. Nesse sentido, nenhum deles exemplifica tão bem o problema quanto os diversos usos que vêm sendo feitos do termo “ALUCINOSE”.
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A expressão Alucinose Alcoólica foi cunhada por C. WERNICKE (1848/1905) para denominar quadros surgidos em alcoólatras crônicos nos quais se observavam: 1- múltiplasalucinações auditivas; 2- associadas etiologicamente ao uso do álcool; 3- cursando com clareza de consciência. Sua descrição e denominação são muito úteis até hoje. A condição foi muito valorizada no DSM-III e sempre que é desprezada decorrem prejuízos na clínica e na nosologia: muitos pacientes que NÃO sofrem de esquizofrenia passam a ser assim diagnosticados (pela CID-X, por exemplo), apesar de apresentarem idade de início, preservação afetivo/volitiva e evolução bem diferentes. Aqueles 3 critérios assinalados são fundamentais no diagnóstico, pois:
1- UMA alucinação (ou ilusão, ou pseudoalucinação) é apenas UMA alucinação (ou…). Quando são muitas e em profusão, referem-se a um ESTADO/QUADRO necessitando nova denominação e a melhor continua sendo ALUCINOSE.
2- ao assinalar o álcool como fator causal, Wernicke já sugeria outro bom critério, uma ETIOLOGIA ORGÂNICA específica (o que as diferenciaria das esquizofrenias).
3- a clareza de consciência é absolutamente fundamental, caso contrário estaríamos  apenas diante de um…delirium no qual falsas percepções são a regra. Não precisamos de mais redundâncias.
Outra tendência perigosa tem sido o esforço de restringir o termo ALUCINOSE às falsas percepções visuais, implicando uma arbitrariedade com a qual a ciência não convive bem. Afinal, se, teoricamente (e certamente na prática), TODAS as falsas percepções podem ocorrer em TODOS os órgãos dos sentidos, por que o mesmo não poderia se dar também quando em profusão (ALUCINOSES): nos olhos, ouvidos e outros? Vejam que reforço muito a expressão “falsas percepções” por se tratar da mais abrangente e genérica de todas. Alguns condenam o uso do termo “alucinose” em função de, na maior parte das vezes, suas falsas percepções não se tratarem de alucinações  propriamente ditas. Trata-se de um preciosismo um tanto tolo.
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ALUCINOSE PEDUNCULAR: REFORÇO AOS CRITÉRIOS DE WERNICKE
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O uso seguinte do termo deu-se em 1922 quando o neurologista francês Jean Lhermine documentou o caso de um paciente que experimentava falsas percepções visuais em consequência a um dano localizado no mesencéfalo e na ponte. Certamente inspirado em Wernicke, e nos 3 critérios assinalados acima (presentes no caso), denominou o fenômeno “alucinose peduncular”, atribuída a um “fenômeno de liberação” devido a danos na formação reticular ascendente (ou ativadora). Minha impressão, reforçada por dois outros casos acompanhados, é a de que, em vez de “liberação”, o que ocorre é a incapacidade da FRA para ativar o cérebro logo após o despertar, mas também no anoitecer, quando as manifestações se agravam. Assim, o paciente como que prolongaria muito (por vezes nem aconteceria) a transição do sono REM à vigília plena. Por isso mesmo, alguns a chamaram alucinose hipnagógica e sua frequente associação com distúrbios do sono reforça a hipótese.
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ALUCINÓGENOS: RESOLVENDO A QUESTÃO TEÓRICA!
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São eles os maiores causadores de estados nos quais ocorrem múltiplas falsas percepções (critério essencial para uma alucinose). A melhor descrição de seus efeitos continua sendo a de A. HOFFMAN (sintetizou e experimentou o LSD, 1943): “…Tudo ondulava e estava distorcido na minha visão, como em um espelho curvo. Perdi a sensação do tempo…Apesar da minha condição delirante(?), era capaz de pensar com clareza e efetividade…A situação à minha volta se tornou terrorífica…tudo assumindo formas grotescas e ameaçadoras. Tudo se movia continuamente, como que de maneira inercial. A pessoa que me trouxe leite pareceu se tornar outra pessoa, vestindo máscara malévola e perigosa…Fui tomado pelo medo de estar ficando louco…” (Kaplan & Sadock, oitava edição).
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Como podemos ver, os 3 critérios de Wernicke estão ali presentes: 1 –múltiplas falsas percepções; 2- causa orgânica; 3- clareza de consciência. A diferença (não desprezível, reconheço) seria: a presença de CRÍTICA imediata (típica quando a origem é visual) e AUSÊNCIA de CRÍTICA (quando auditivas). Seria isso, porém, suficiente para que o termo ALUCINOSE não pudesse ser aplicado a ambas? Tomando como critério principal a ocorrência de um QUADRO com múltiplas falsas percepções, acrescento apenas: o poder de convencimento das falsas percepções (imposição à mente como um todo) é muito maior quando envolvem a AUDIÇÃO. Não por acaso, o ouvido foi chamado “o órgão do medo” (Nietzsche), e todos nós costumamos atribuir à VISÃO o papel de maior instrumento de VERIFICAÇÃO de veracidade: “teste S. Tomé”. “ver prá crer”. “o diabo não é tão feio quanto pintam”.
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BORRANDO O CONCEITO: ALUCINOSE COMO SINTOMA ISOLADO
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Teriam sido H. CLAUDE E H. EY (década de 1930) os responsáveis pela aplicação do termo ALUCINOSE a UMA e única falsa percepção:  “…percebida no espaço objetivo externo (fora da mente)…adequada e imediatamente criticada pelo indivíduo…sob lucidez de consciência (E. Cheniaux, “Falta de Uniformidade Quanto aos Conceitos…”). Esse uso do termo para designar UMA falsa percepção (em vez de para uma síndrome ou quadro), parece-me completamente inadequado, até mesmo do ponto de vista etimológico. Afinal, o sufixo OSE refere-se a multiplicidade(parasitose, pediculose, leucocitose, linfocitose e tantos outros), mas também é usado para doenças (tuberculose, blastomicose…). Não encontramos o uso eventual desse sufixo para designar UM sinal ou UM sintoma.
Por fim, o problema daquela manifestação descrita foi resolvido por dois autores norte americanos, SHEPERD And ZANGWILL (“Handbook of Psychiatry”, vol. I Cambridge Univ. Press,1983): chamaram o fenômeno simplesmente PSEUDOALUCINAÇÃO, para isso tomando como critério principal a manutenção da crítica. Foram bastante fieis ao prefixo PSEUDO (semelha, mas não é), deixando de lado o critério “dar-se no espaço interno” aplicado por Jaspers. Estou convencido, aliás, de que esse último critério retira todo o interesse clínico da descrição contida na sua “PSICOPATOLOGIA GERAL”*. Até a própria “audição de vozes dentro da cabeça”, tão usada com exemplo, seria muito melhor classificada como “alucinação extracampina”. Chamá-las pseudoalucinação é uma aberração, pois o paciente nelas acredita plenamente, apesar de se darem fora do campo perceptivo. O mesmo acontece, por exemplo, quando um paciente afirma estar ouvindo (sem aparelhos) alguém falando dele em outro país ou estado.
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*O que dizer da longa discussão ali contida quanto à distância que uma pseudoalucinação guardaria em relação ao “campo escuro” que a cercava? “A distância dessas imagens dos olhos interiores (?) que observam é variável, de 0,4m a 6 m, porém a visão mais clara depende da distância, que, nesse caso, é pequena por conta da miopia” (daquele que descreveu, Dolinin). Convenhamos: esse não foi o melhor momento de Jaspers. Soa estranha, inaceitável mesmo, o uso de critérios aplicados no mundo real (miopia nos olhos verdadeiros) às representações associadas aos “olhos internos”. Será que ele não sabia ser a miopia originária de um problema nas LENTES dos olhos concretos e que uma representação dispensa…os olhos?
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ