Temas e Controvérsias

PERCEPÇÃO OU APERCEPÇÃO DELIRANTE?-I

W. WUNDT (1832-1920)

(Da importância de uma boa DENOMINAÇÃO, a partir de um bom CONCEITO)

Márcio Amaral, vice-diretor IPUB
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“…o que se chama percepção, deve-se distinguir da apercepção ou tomada de consciência…” (“Novos Ensaios Sobre o Conhecimento Humano” GW Leibniz).

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É esperado de uma denominação científica que guarde relação íntima com o conceito e/ou definição* de um fenômeno qualquer. A rigor, e no processo de estudos, entretanto, o pensamento segue o caminho oposto, terminando pela denominação: 1-observação do fenômeno; 2– sua descrição; 3– elaboração de uma definição ou conceito que o abarque; 4– sua denominação. Assim, uma boa denominação é aquela que oferece pistas quanto às principais características de um fenômeno, de maneira a permitir boas associações e inferências. O que seria, então, uma percepção (ou apercepção) delirante?
“A uma percepção corriqueira, é associado um conteúdo autorreferente (quase sempre de ameaça imediata à própria vida) com características de uma revelação (certeza absoluta) e significado sem qualquer vínculo temático com o objeto percebido”. Costuma surgir a partir de um estado de estranheza generalizada que foi denominado “trema” e é associada à eclosão plena de uma esquizofrenia.

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Dois exemplos da minha clínica: 1- um paciente chega em casa, abre a geladeira, vê que ela foi lavada e que esqueceram um tomate podre em um dos seus cantos. Tem a revelação de que será morto e foge correndo.
2- um paciente entra em um ônibus (no tempo das fichas de cores diferentes, dependendo do trajeto a percorrer) e o trocador, depois de olhar prá ele, troca uma ficha vermelha de posição: súbita revelação e a certeza de que vai ser morto. Salta apressado, já com o ônibus andando.
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Como todos podem ver, durante a ocorrência do fenômeno, não há qualquer modificação nos objetos PERCEBIDOS. Por isso, e diante da denominação, somos obrigados a múltiplas ressalvas quando da sua apresentação a alunos: “…Fica a impressão de haver algum distúrbio no processo senso perceptivo, mas não há. A percepção é normal, o problema é a ideia associada, etc.”. Sentenças dessa ordem, cheias de ressalvas para afastar pistas erradas, deveriam ser suficiente para a conclusão de que uma denominação está ERRADA. É caso das assim chamadas percepções delirantes descritas por Jaspers e revistas por K. Schneider (L. Lopes, 1982). Aquilo que vamos tentar demonstrar, é que o fenômeno se refere à apercepção e não à percepção. Além disso, há que resgatar a importância daquele conceito no desenvolvimento da Psicopatologia.

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TRÊS MOMENTOS DA INTERAÇÃO SENSO-PERCEPTIVA E INTEGRAÇÃO DO MUNDO EXTERIOR
Devemos a W. Wundt em 1874 (Mello,1979) a distinção bem clara entre os três momentos dessa interação. Não por acaso, foi ele o criador da assim denominada psicologia fisiológica (estudo  das relações entre o funcionamento da mente e seus correlatos fisiológicos):

1- sensação: associada à captação de estímulos ainda não diferenciados (implicando órgãos dos sentidos, reações químico-físicas e vias de condução: comprimento de onda e intensidade do estímulo, no caso da luz)

2- percepção: implicando a organização dos estímulos em FORMAS mais ou menos definidas.

3- apercepção: atribuição de significado ao percebido e compreensão da cena apercebida ou situação em que alguém se encontra.

Esse último conceito foi inspirado na obra de Leibniz, que defendia a existência de múltiplas percepções em um mesmo momento que não são tornadas conscientes por conta de um certo “filtro de estímulos”.
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APERCEPÇÃO E ATRIBUIÇÃO DE SIGNIFICADOS
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Quando cotejamos o conceito da assim chamada percepção delirante com o de apercepção, conforme se pode ver abaixo, fica óbvia sua relação íntima, pois se referem à atribuição de significado:
Se habla de percepión delirante…cuando se les agrega a autênticas percepciones un significado anormal, en el sentido…de la auto referência…” (K. Schneider,1955).
“…aperceber-se, isto é, entender o verdadeiro significado conceitual do percebido”(Mello,1979).
“Apperceptionawareness of the meaning and significance of a particular sensory stimulus as modified by one’s own experiences, knowledge, thoughts and emotions”(Sadock,2005).
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K. Jaspers conhecia bem a obra de Wundt e não tinha dela uma impressão muito favorável, considerando-a “antiquada em muitos aspectos” (Jaspers, 1963). Apesar de não discutir esse tema específico em sua obra, é muito provável que ele simplesmente não aceitasse aquela divisão proposta pelo fundador da psicologia fisiológica e até mesmo a própria existência da apercepção. O mais curioso, é que a formulação de Wundt guardava uma intimidade enorme também com a obra de Kant, considerada uma das fontes de inspiração para a própria fenomenologia, uma vez que a simples existência de um eu consciente e racional estaria intimamente relacionada à “Apperzeption”“…identidade da consciência, isto é: a unidade analítica da apercepção só é possível sob a pressuposição de alguma unidade sintética qualquer” (Kant, 1787). Um ser.

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*Sem ter nunca lido nada a respeito, mas aplicando raciocínio baseado na semântica, DEFINIR implica “reduzir a palavras algo que é observado diretamente na natureza”. Deriva de “dar um fim”: eliminar um problema na esfera do conhecimento. Já a palavra CONCEITO, por derivar de conceber(concepção), implica um “constructo” mental que auxilia a lidar com os problemas da vida. Nem sempre é muito fácil delimitar uma definição de um conceito. É o caso das APERCEPÇÕES DELIRANTES aqui discutidas.