Temas e Controvérsias

DELÍRIOS: DISTÚRBIOS DE CONTEÚDO DO PENSAMENTO OU DA LÓGICA FORMAL?

(A Importância do Estudo das Formas de Apresentação de um Delírio)

Por mais impactantes que possam ser os conteúdos dos Delírios, poucos dentre eles trazem, já no seu enunciado, a sua total impossibilidade (definição de absurdo). Mesmo que sejam muito improváveis, esses conteúdos raramente caracterizam, em si, a presença de um transtorno psiquiátrico propriamente dito¹. As mitologias dos diversos povos, com seus conteúdos frequentemente absurdos ao olhar mais racional, são uma comprovação da tese. É bom não esquecer, ainda, o critério do não compartilhamento (para além das “folie a deux”, é claro), uma vez que as crenças compartilhadas por grupos (por mais absurdas que possam parecer) são fenômenos sociológicos e seu estudo não autoriza aplicação de critérios para Delírio.

Independentemente dos conteúdos, os Delírios são decorrência de um distúrbio naquilo que os filósofos chamam (desde Aristóteles) LÓGICA FORMAL. A Lógica estuda as relações existentes (causais e de implicação) entre juízos e eventos. Piaget (em “O Raciocínio na Criança”) chamou-a: “a arte de provar…a partir de demonstrações“. É exatamente isso o que se verifica no estabelecimento progressivo (ou não) de um Delírio, uma vez que os pacientes tendem a sempre “comprovar” suas certezas. O que parece ocorrer, nesses casos, entretanto, não é um mero colapso no “aparato mental para a lógica”, mas uma necessidade quase vital da nova narrativa construida solitariamente. Por isso, aplicamos o critério de “enraizamento” e tomada da personalidade como um todo (à maneira de um “tumor maligno”) como um dos principais critérios na sua distinção em relação às idéias deliróides, abandonadas sem dificuldade após a superação do transtorno de base. A questão quanto a esse processo se dever (ou simplesmente associar) a alterações fisiopatológicas continua sem solução. Há correlações, mas de natureza causal ou meramente de implicação?

A subdivisão, na avaliação do pensamento, entre: curso, forma e conteúdo (e a inclusão dos Delírios entre os distúrbios desse último) é útil e natural do ponto de vista semiológico. Aquilo que nos tem incomodado sobremaneira, é o descaso com que alguns autores contemporâneos tratam um ítem que consideramos imprescindível nos capítulos referentes aos Delírios: FORMAS DE APRESENTAÇÃO DOS DELÍRIOS, pois é nele que vamos encontrar a herança de toda a discussão que fizemos acima. Não é de se desprezar o fato dos Delírios, independentemente de seus conteúdos, apresentarem-se somente segundo quatro formas (ou três, ver abaixo).

1-Interpretação Delirante– tendência a olhar para todos os acontecimentos sociais e pessoais recentes como fazendo parte da crença delirante primordial. O acaso como que desaparece e praticamente tudo ganha significado relacionado ao Delírio.

2-Representação²- um processo parecido é aplicado aos acontecimentos do passado que também passam a ser olhados a partir da ótica delirante atual. Os acontecimentos recordados se inserem e reforçam as crenças delirantes atuais.

3- Cognição– Certeza absoluta em relação a uma crença delirante, sem que o próprio precise dar qualquer explicação ou apresentar raciocínio para seu reforço. As coisas são simplemente assim e não precisam de demonstração. Todos teem dele conhecimento.

4- Percepção (ou Apercepção) Delirante– a partir da percepção normal de um evento corriqueiro e sem qualquer conexão de significado com a conclusão (distúrbio da apercepção), a pessoa tem uma revelação auto-referente, na quase totalidade das vezes ameaçadora. A revelação é também imediata, sem passar por raciocínios de convencimento (critério obrigatório).

Do ponto de vista da importância mais propriamente semiológica, as duas últimas são menos frequentes; mais associadas a uma desestruturação da personalidade e mais intimamente associadas ao risco de uma evolução típica para a caracterização de um dos tipos de esquizofrenia.

Alguns poderiam perguntar pelo interesse prático de todas essas considerações e se não seriam lucubrações inúteis. Não somos meros práticos e há sempre que buscar pelos nossos “marcos de fundação”. Sua perda produz um conhecimento fragmentado e insatisfatório.

¹ Para o caso dos Delírios associados a múltiplas e bizarras alucinações cenestésicas e da consciência do Eu, entretanto, essa regra não se aplica.

² Essas duas primeiras são, em verdade, apenas variações uma da outra, uma vez que o processo é o mesmo. Sua aplicação difere apenas quanto a acontecimentos recentes (e para a frente no tempo) ou do passado, mais ou menos remoto.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ