Temas e Controvérsias

DSM-V: ESTARIA A APA “EMBURRECENDO”?!

Fui dos primeiros a louvar o advento do DSM-III. Antes que os meus “pares” me impedissem de publicar, até mesmo no jornal do Instituto do qual fui diretor*, escrevi uma série de artigos (na década de 1980) apontando os grandes avanços que pareciam cristalizados naquela classificação. Sua enorme valorização da síndrome como etapa primordial para investigação e aplicação de uma hipótese diagnóstica; a obrigatoriedade da observação da evolução para atribuição de um diagnóstico nosológico e a humildade diante das insuficiências da semiologia para estabelecimento de correlação específica entre sinais/sintomas e entidades nosológicas, impressionaram-me muito positivamente. Percebi ali tantos achados, como por ex: a possibilidade da convivência de um diagnóstico para os Transt. da Personalidade ao lado do sindrômico, que logo me convenci de haver uma psiquiatria de antes e outra de depois daquela Classificação.

Na sua IV edição, mais de uma década depois, muitas daquelas conquistas começaram a se perder (ver “E os Eixos Diagnósticos Saíram dos Eixos-I e II“). Agora, na preparação para o DSM-V, ao que tudo indica, os responsáveis por ela estão “emburrecendo” de vez, como tentarei demonstrar abaixo. Estou fortemente inclinado a concluir que a ganância está vencendo, mais uma vez, o espírito científico. Por isso, não compartilho do quase pânico que tem tomado a hostes das pessoas que tentam manter e/ou resgatar a dimensão humana na nossa profissão. Têm se referido à nova classificação que se avizinha como se fosse um “bicho-papão”. Eu, ao contrário, penso que o DSM-V vai representar o ponto de deflexão da importância da psiquiatria norte-americana no mundo. Não de suas pesquisas e avanços tecnológicos—nisso eles são bons mesmo—mas das conc lusões e práticas que aplicam a partir dessas pesquisas e tecnologia. QUE INVESTIGUEM BEM! NÓS “LIMPAREMOS” SEUS ACHADOS (eliminando as mistificações) E DAREMOS A ELES NOVA DIMENSÃO!

Uma das maiores preocupações dos profissionais de saúde mental, em relação àquela Classificação, tem sido sua forte tendência a tornar diagnóstico de transtorno situações que fazem parte da vida cotidiana, em seus momentos mais extremos, como por ex. a medicalização do luto, em geral. Por isso, nessa discussão, vou me ater a algumas das situações clínicas (ou quase) mais próximas das variações mais extremas da “normalidade”.

1- TRANST. DA PERSONALIDADE– conforme assinalei, houve nesse capítulo um dos maiores achados da DSMIII: o diagnóstico em segundo eixo,em paralelo ao da síndrome, permitiu sua convivência, implicando também a abordagem de suas manifestação como traços mais marcantes e não sinais/sintomas. Por definição, esses trantornos não seriam, então, doenças propriamente ditas, apenas um “caldo de cultura” para o seu surgimento, como o maior risco entre os esquizóides para o desenvolvimento de SQZ. Mas não foi apenas isso, e é nesse ponto que vejo um certo “emburrecimento” da APA! Na caracterização desses traços marcantes, o DSM III resolveu até mesmo problemas teóricos históricos, como o critério aplicado por K. Schneider: “aqueles que sofrem ou fazem sofrer…“. Incorporando, de alguma forma esse critério, chegaram a duas palavras que o ampliaram e resolveram definitivamente o problema: traços, a um só tempo, INFLEXÍVEIS E DESADAPTATIVOS NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS. Por que inflexíveis? Porque se manifestariam sempre (ou quase), independentemente da situação: um paranóide que mantém atitude de desconfiança, mesmo em ambientes acolhedores. Desadaptativos, pois o diagnóstico somente pode ser aplicado quando aqueles traços inflexíveis trouxerem prejuízos para o próprio. Critérios envolvendo “prejuízo à sociedade” induzem o uso da Psiquiatria para fins de opressão do Estado.

O que está propondo o DSM-V para esse capítulo? Seu quadro essencial seria:

…impairments in personality functioning and the presence of pathological personality traits…” (APA-DSM-5 Development- via Google)

Há aqui redundâncias dignas de uma inteligência limítrofe: um transtorno caracterizado por apresentar prejuízos. Nem o “Cons. Acácio” (E. de Queirós) diria melhor. O que dizer de “traços patológicos da personalidade”? Aliás, o que querem dizer com isso? Eu tenho uma hipótese: somente o uso da palavra “PATOLÓGICO“, sugerindo doença, poderia autorizar algumas “pesquisas” e intervenções, sabe-se lá com que interesses. Escolham a “melhor” hipótese: deficit intelectivo ou ganância dos autores. Eu fico com as duas: A GANÂNCIA EMBURRECE**. Todos os avanços da DSMIII, nesse cap., escorreram pelo ralo.

2-“PARAPHILIC DISORDERS“- Não podemos nos esquecer de que esse capítulo envolve CRIMES E ILÍCITOS PENAIS, como para as pedofilias e o estupro. Por outro lado, as “soluções” apresentadas, pelas “autoridades” e imprensa, tendem a ser as piores possíveis, elevando o medo generalizado do carinho e intimidade entre as pessoas. Não é razoável que a Psiquiatria sirva a esse fim. O que propôe o DSM-V?

“…por mais de 6m, um interesse sexual por prepúberes—ou crianças precocemente púberes—igual ou maior do que o dirigido a uma pessoa madura, manifestada através de fantasias, desejo intenso ou comportamento.”

A comparação da pedofilia com o desejo em relação a adultos está totalmente deslocada, uma vez que essas pessoas, na imensa maioria dos casos, não têm esse desejo para com adultos. A pedofilia não é um mero capricho, como se alguém estivesse diante de um menu—dependendo da situação, escolheriam adultos ou crianças?!—mas uma condição muito grave e incontrolável da qual o próprio agressor é vítima*. O que dizer, além disso, da inclusão das FANTASIAS como critério e no mesmo nível dos comportamentos? Totalmente inaceitável! Estamos induzindo um pavor em relação aos próprios pensamentos e sentimentos. Essa é a pior de todas as escravidões. Há uma frase atribuída a Lutero que deveria ser lapidar: “Não podemos impedir as aves de mau agouro de voar sobre nossas cabeças. Só não devemos dei xar que nelas façam ninho”. De alguma forma, respondia às sentenças católicas: “Se você pensou, já pecou”, “se o teu olho te envergonha, arranca-o”; “cabeça vazia é oficina do diabo”, todas cunhadas visando o domínio das pessoas através do medo de si mesmas. É nesse “moinho” que a psiquiatria norte-americana está atirando suas águas.

Todos os movimentos dos aparatos de segurança dos Estados, envolvendo a grande mídia, tem sido no sentido de elevar esse medo das pessoas em relação a seus semelhantes e a seus próprios pensamentos e sentimentos. Tem havido, ainda, um retorno à idéia da EXTIRPAÇÃO como método para “solução” dos problemas sociais e humanos, inclusive de indivíduos, através da pena de morte e execuções sumárias, sordidamente aplaudidas mundo afora. Tudo isso é extremamente perigoso para a saúde mental das pessoas e das sociedades. A indução do medo à intimidade e ao carinho entre adultos e crianças semelha a defesa do corte de todas as árvores somente porque um galho caiu sobre a cabeça de alguém. Afastando os adultos de alguma intimidade com crianças, estaremos piorando o problema, uma vez que essa proximidade parece ser uma necessida de. A Psiquiatria norte-americana está se transformando, como o cinema e boa parte da mídia, em um “braço” do conservadorismo e do aparelho de segurança do Estado.

3-O LUTO E OS TRANST. DE AJUSTAMENTO– Esta última palavra, usada em uma Classificação, deveria ser suficiente para nos provocar incômodo. Não somos parafusos e não viemos ao mundo para sofrer ajustes a um meio qualquer. Precisamos ser sempre uma instância crítica e individualizada. Mesmo duvidando da utilidade de um cap. desses, bem melhor seria falar de TRANST. DE READAPTAÇÃO (após uma perda importante) uma vez que, até para manter aquela capacidade de crítica, é necessária alguma adaptação.

A maior dificuldade, em um cap. dessa natureza, é exatamente sua DELIMITAÇÃO*** em relação a: 1-Transtornos Psiquiátricos mais específicos e correlatos (depressões, TEPT e outros), por um lado e; 2-Variações mais extremadas do normal, por outro. No primeiro caso, a não feitura de um diagnóstico específico implicará, necessariamente, prejuízos na terapêutica. No segundo, uma intervenção precipitada, em um processo muito individual de READAPTAÇÃO, só poderá trazer mais prejuízos do que benefícios.

Por tudo isso, há que ser muito cuidadoso com a linguagem e somente se valer da palavra SINTOMA a partir da caracterização de um transtorno propriamente dito. Não nos deve ser permitido usar essa palavra da mesma maneira que os leigos o fazem: apenas como um indicador da presença de alguma coisa. Esse cuidado não vem sendo observado pelos organizadores da DSM-V. Falam de “symptoms or behaviors” como se as palavras fossem intercambiáveis….

Demonstram também uma preocupação quantitativa exagerada, como por ex: “…the individual experiences on more days then not intense sorrow or emotional pain…”. Há nessa proposta de contagem de dias uma tolice sem par. Já na delimitação de um período para a caracterização de um “Adjustment Disorder Related to Bereavement (luto)”—“for at least 12 months (6m for children)”—dão a impressão até de um excesso de cuidado, uma vez que esse período parece excessivamente longo. Mas não é bem essa a questão. Trata-se apenas de mais uma perda de critério, uma vez que: sempre que uma aparente REAÇÃO (ou “RESPONSE”, como preferem chamar) a um “identifiable stressor”, adquire movimento e evolução próprios, houve, na verdade, um DESENCADEAMENTO (o “stressor identificável” teria funcionado apenas como um “gatilho”). Perderam um critério obrigatório para a caracterização de uma reação: cessada a AÇÃO, deve cessar a REAÇÃO.

Nossos irmãos do norte, com sua objetividade, por vezes também “emburrecedora”, não se preocupam (ou sequer se dão conta) de certas sutilezas. A mente humana não deveria ser seu objeto de estudo.

Já cumpriram seu papel. É hora de outras forças na intelectualidade—ligadas à psiquiatria, psicologia, sociologia, antropologia e outras—retomarem suas posições, a partir, é claro, dos avanços trazidos, nas últimas décadas, por sua pesquisas.

*Este BLOG, aliás, teve sua origem no dia em que um dos meus artigos precisou ser transformado em “carta ao editor” para publicação, pois fora desclassificado com ataques chulos de “pares”, encobertos pelo manto do anonimato. Bem…eu sempre apreciei mais o “ímpares”!

** Com frequência, nossos interesses toldam a avaliação das coisas. Há informações de ter havido um aumento considerável de pesquisadores com conflito de interesses entre os membros da Comissão responsável pelo DSM 5. É prenúncio e garantia de rápida decadência.

***Esta palavra é chave para que entendamos a importância do papel de E. Kraepelin (1856-1926). Durante seus esforços para bem caracterizar alguma condição observada detidamente, e depois de sua descrição detalhada, ele dedicava toda uma seção à sua DELIMITAÇÃO (“UMGRENSUNGEN”) em relação às demais já descritas..

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ