Temas e Controvérsias

E OS “GRANDES CRIMINOSOS” (QUEM DIRIA?) FORAM OS HERÓIS!

( "São os valores morais dos criminosos contumazes diferentes em relação aos dos demais cidadãos?"*)
Não há ninguém, nem mesmo o pior facínora… que não deseje, quando se lhe apresentam exemplos de lealdade nas intenções, de perseverança e obediência a boas máximas..ter também esses bons sentimentos.” 
 (I. Kant, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”).
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*NOTA: Trata-se do título da minha tese de doutorado (1996) e o acontecimento que vamos discutir renovou seu significado. Costumo dizer que não devemos julgar pessoas, mas apenas seus ATOS específicos. Há que evitar os “rótulos e tatuagens” indeléveis (aqueles que condenam alguém para toda a vida) para qualquer um. Em relação à justiça, não creio que essa ideia possa prosperar, mas nas relações sociais, escolares e familiares em geral, com toda a certeza. Muito a propósito e por exemplo, a atribuição da denominação “OVELHA NEGRA” implica atirar certas pessoas a uma espécie de “INFERNO MODERNO” e dentro das famílias. Assim como chamar de “turistas” ou vagabundos alunos faltosos implica também julgamento da pessoa. Trata-se de um grande exercício a aplicação desse PRINCÍPIO, especialmente na educação.
Pois bem, na situação que vamos discutir, o rapaz e sua família, mas especialmente os encarcerados que o protegeram, se saíram muito bem. Diria mais: elevaram a própria humanidade a um novo  patamar. Já as autoridades “responsáveis” pela situação, essas ficaram muito mal. E até da família vitimada pela perda de um filho, além das testemunhas que fizeram o “reconhecimento” do assassino, esperava-se a admissão do erro e um pedido de desculpas. Ele não veio.
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50835166 2148439925199593 2239104727876894720 nneguinhoFoi, sim, um acontecimento que sensibilizou toda a sociedade. Por alguma razão, talvez por conta das verdades estampadas nas faces dos familiares e também na do rapaz, formou-se muito rapidamente uma forte impressão de se tratar de uma enorme e muito perigosa injustiça. De imediato, os velhos e compreensíveis estereótipos, de mau julgamento em relação aos encarcerados em geral, certamente tomaram conta de quase todas as mentes: “…Vai ser violentado, agredido e morto pelos monstros aos quais foi atirado”, etc. Por vezes nos esquecemos de que esses falsos vaticínios são fatores de indução de condutas. Paremos de emitir julgamentos irresponsáveis; de atribuir aos outros as sujeiras que povoam nossa cabeça, todos engendrados pelo medo, diga-se de passagem. Eu, que trabalhei por 11 anos em H. de Custódia, aprendi a evitar pré julgamentos. Verifiquei também muitas expressões sugestivas que reforçaram a ideia de preparar a tese citada. Nenhuma, é verdade, tão lírica e dramática como a aqui reportada.
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ESTARIAM ATÉ OS APRISIONADOS SENSÍVEIS AOS NOVOS TEMPOS?
“Se estivesse no nosso poder escolher entre viver segundo as prescrições da Razão ou ser conduzidos pelo desejo cego, todos viveriam sob a batuta da Razão e segundo regras sabiamente instituídas”.  B. Espinosa – Tratado Político.

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Agora a tese será ainda mais complexa: quem pode negar o processo de reavaliação a que nossa história está sendo submetida; principalmente através da crítica aos muitos horrores cometidos contra os negros, desde sua caça, transferência e tortura, até a “importação” de brancos (e broncos) europeus a partir do Golpe Militar* que derrubou Pedro II? Cessada a escravidão (propriamente dita), restava agora a pior das humilhações: os esforços de “embranquecimento” da raça, o abandono daqueles brasileiros ao “Deus dará” e a introjeção nos próprios da vergonha de ser negro. Tudo isso está sendo revisto e eu posso supor que até os encarcerados (especialmente os que protegeram o rapaz) estão sendo atingidos por essa revisão histórica. Quem sabe não voltaram a acreditar (por pouco que seja e ainda que sem consistência) em uma mudança social mais consistente no olhar a eles e aos seus parentes dirigido?
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 Uma coisa é certa, considerando que o amor ao próximo não exclui o amor a si próprio (pelo contrário, é condição), diria: identificaram-se profundamente com o injustiçado (viram a eles mesmos no outro) e, por isso, fizeram um halo de proteção em torno dele. Tudo isso teria ocorrido no mundo físico. Já no mundo dos valores e dos sentimentos, o halo foi em torno daquilo que eles mesmos tinham (e ainda têm) de melhor e que sentem ainda passível de resgate. Psicologicamente, só assim podemos entender sua conduta: conseguiram ver o menino que cada um deles um dia foi, antes das primeiras injustiças e julgamentos sofridos—no rapaz que entrou em sua cela. Esses valores profundos estavam um tanto amortecidos, mas aqueles homens, talvez inspirados pelos novos tempos, conseguiram (até para seu próprio bem e das pessoas que amam) resgatá-los, ainda que momentaneamente e sem consistência, admitamos. Sei que vão me acusar de “excessivamente poético” (e nada cientista). Será um elogio. Afinal, a palavra deriva de “POIESIS”: criação, construção, produção. Entendo-a como uma indicação de que tudo começa e termina na poesia. No meio do caminho, vivemos a nos perder.
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NUNCA O PAPEL DA COR DA PELE FOI TÃO ÓBVIO
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Disse a advogada de defesa: “No reconhecimento a que ele foi submetido, todos os outros tinham tom de pele bem mais claro“, ou seja: o “reconhecimento” foi induzido e IRRESPONSÁVEL. Da parte das testemunhas, parecia até não haver um RECONHECIMENTO da condição humana: tanto no criminoso quanto naquela PESSOA que reconheceram erradamente. Era negro e isso bastava: apenas um borrão, sem forma ou sentido; sem expressões individualizadas; sem expressões fisionômicas mais profundas; nenhuma intuição de reconhecimento no encontro entre dois olhares entre dois semelhantes… NADA. Era negro e isso bastava. E é assim que se atira ao INFERNO toda uma população com certa característica tornada um ESTIGMA. Pior, depois de confirmado o erro de possíveis consequências desastrosas, os acusadores sequer fizeram uma declaração a respeito. Posso pensar que tinham já sofrido demais pela morte do seu filho, mas alguns dirão (e ninguém lhes poderá tirar a razão) que julgaram que teria sido se rebaixar. Deixemos isso de lado. Alguns deles devem estar se sentindo muito mal. Sempre seria tempo para um pedido formal de desculpas.