Temas e Controvérsias

Enquanto esperamos o DSM-V

Quando se aproxima a publicação de uma nova edição dos DSMs, talvez seja um bom momento para refletir sobre o esforço classificatório que tanto influenciou a psiquiatria a partir da terceira edição daquele mesmo manual (1980).

Por mais que tenham ocorrido exageros (e um uso indevido das classificações que se seguiram) não há como negar que o DSM-III foi uma espécie de “divisor de águas”. Até mesmo seus organizadores parecem ter se surpreendido com o sucesso de uma classificação que demarcou a necessidade das pesquisas na produção do saber em nossa especialidade, uma vez que seu uso mundial extrapolou em muito o mero papel de seleção de amostras mais homogêneas para aquele fim. Há, efetivamente, uma psiquiatria antes e outra psiquiatria depois de 1980 e um indicador disso é que livros excelentes, como o “Mayer-Gross” e o “W. Lishman” como que “envelheceram” subitamente.

Dois dos princípios daquela classificação renderam homenagem à humildade e nunca é demais seu elogio: 1-SER ATEÓRICA e, 2-EXIGIR A OBSERVAÇÃO DA EVOLUÇÃO DOS PACIENTES PARA ESTABELECIMENTO DOS DIVERSOS DIAGNÓSTICOS NOSOLÓGICOS ALI CONTIDOS. Outros, como a operacionalização, por exemplo, tiveram efeito duvidoso e um exemplo para isso foram os critérios para Personalidade Anti-Social e sua relação com o risco de suicídio. A confusão que resultou entre meras condutas anti-sociais e as personalidades propriamente ditas (obtida a partir do preenchimento de questionários operacionalizados) e a exclusão de remorso ou culpa (por não serem “operacionalizáveis”), fez misturar seus critérios com os dos “borderlines”, levando a que as PAS passassem a ser consideradas fator de risco para o suicídio, quando, até então, eram consideradas quase como “protegidas” contra ele (Cleckley). Somos tão radicais nessa consideração, que uma tentativa determinada de suicídio deveria ser suficiente para a mudança de um diagnóstico de PAS. Seria ótimo se fosse possível operacionalizar todos os instrumentos de verificação, mas o núcleo das coisas costuma ser imponderável e não apreensível por instrumentos que tudo reduzem a números. Como diz a propaganda de um cartão de crédito: tudo tem preço, menos o essencial.

Voltando ao ateórico, fazer apologia da “não teoria”, não é coisa do agrado de cientistas e pensadores em geral. Todo saber humano busca o desenvolvimento de teorias que permitam dar sentido aos diversos fenômenos observados em alguma área. Essa necessidade é de tal ordem que, com muita frequência, e na falta de uma teoria satisfatória, inventamos algumas totalmente inconsistentes. No nosso caso, havia a necessidade, além disso, de se encontrar uma linguagem comum unificadora e a única possível (considerando o saber da época) era mesmo aquela baseada em manifestações clínicas observáveis: sinais e sintomas. Não havia nisso qualquer inibição ao desenvolvimento de teorias, apenas um reconhecimento de que nenhuma delas era convincente para a maioria.

O segundo princípio assinalado, teve efeito mais marcante ainda, uma vez que não há especificidade nas relações entre sinais/sintomas e transtornos. Além disso, a valorização da evolução (no que se refere às esquizofrenias, por exemplo) realçou aspectos mais nucleares da condição (as manifestações ditas “negativas”, como a deterioração dos afetos e vontade) que, até então, tinham sido ofuscados pelas descrições muito ricas dos sintomas assim chamados “produtivos” ou “positivos” (delírios e alucinações). Do ponto de vista da terapêutica, esse adiamento do diagnóstico nosológico não implicou prejuízo algum aos pacientes, uma vez que a quase totalidade dos tratamentos em psiquiatria são sintomatológicos ou, digamos assim, sindrômicos. Como consequência, a boa caracterização das síndromes passou a ser prioridade e aquele adiamento promoveu uma elevação marcante da taxa de concordância entre os médicos em torno desses mesmos diagnósticos (confiabilidade) o que não deixava de ser um bom indicador da qualidade do instrumento. A importância da valorização do raciocínio sindrômico ainda está para ser estabelecida. Quanta organização de conduta e pensamento resultou desse simples esforço de bem caracterizar as síndromes e suas relações!

om o início das pesquisas, ficou muito evidente que o conhecimento, até então acumulado na nossa especialidade, não permitia “diagnósticos magistrais” e pretensiosos. Muitos desses diagnósticos (e os critérios aplicados para sua feitura em muitos dos livros clássicos), aliás, não resistiram à pesquisa, mostrando-se, no mínimo, inconsistentes quando aplicados de maneira sistemática (“Research Diagnostic Criteria” e os Critérios de Feighner). Apesar dos mais de trinta anos decorridos desde então, e dos enormes progressos obtidos na investigação e terapêutica, aqueles mesmos princípios assinalados continuam válidos. Esperamos que a nova edição não se transforme em uma peça de afirmação de tendências e continue a tentar plasmar em um todo o saber de uma época.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ