Temas e Controvérsias

HANNAH ARENDT: CULTO À RAZÃO LIMITOU SEU ALCANCE?!

(O PAPEL SOCIAL DA PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA-III- Conclusão)

“Pensar constitui um diálogo entre EU e EU MESMO. Mas esse diálogo de ‘2 em 1’ não perde o contato com o mundo dos semelhantes, posto que eles estão representados no EU de quem pensa. O problema de estar por demais só, é que esses ‘2 em 1’ necessitam dos outros para que voltem a ser apenas UM…cuja identidade jamais pode ser confundida com a de outro qualquer.” (Hannah Arendt, “As Origens do Totalitarismo”)

Chega a ser irônico ver alguém que desmereceu tanto a investigação psicológica empreendendo uma das mais profundas que, um dia, alguém já realizou. Com muitas décadas de antecedência—e trilhando caminho aberto por Nietzsche—H. Arendt formulou um conceito que só recentemente a neuropsicologia demonstrou de maneira cabal. E com que clareza e estilo! Essa e outras das suas observações voltadas à psicologia, entretanto, não foram suficientes para que considerasse a existência de um “inconsciente dinâmico”* determinando a maior parte de nossas condutas, a partir de necessidades que a civilização “ensinou” a escamoteadar.

Sua discussão da solidão induzida pelo mundo moderno, como condição para o surgimento do totalitarismo—“…a solidão, que já foi experiência periférica…passou a ser a experiência diária de massas cada vez maiores“—é outro foco da sua investigação psicológica. De uma jovem brasileira, que vive em Boston desde a infância, ouvimos: “Por lá, todos querem dar a impressão de não precisar de ninguém!”. A solidão sendo tratada como um valor a cultivar! Outro achado essencial na obra de HA, envolvendo investigação em duas vertentes—social e individual—foi o pavor à contradição nas mentes e nos sistemas totalitários. Todos os “muito coerentes”—Ahmadinejah, Netanyahu, Santorum—gostariam mesmo era de inventar um “novo ser humano”, segundo alguma forma rígida.

Nuclear na origem do totalitarismo foram as crenças em “destinos inevitáveis”—para a espécie ou para um povo—que deveriam nortear as condutas de governo e individuos: o ser humano a serviço, seja da sobrevivência do mais forte (“darwinismo social“); seja da “revolução inevitável” que levaria ao “comunismo universal“; ou da imposição do “poder ariano” a toda a humanidade. Quando se perdem os seres humanos individuais como a referência, preparam-se os caminhos para os maiores absurdos, necessariamente. Não seria isso mais uma demonstração da importância da PSICOLOGIA? HA, entretanto, não conseguiu se libertar totalmente de sua época, e deu a entender que o problema foi que tivessem executado “…a Lei da História ou da Natureza, sem convertê-la em critérios de certo e errado que norteassem as condutas individuais” (idem). Não! Definitivamente, não! A perversão estava no origem do processo e nenhum código poderia evitar sua expressão.

Quando afirmou, além disso, ter o poder nazista reduzido as pessoas aos instintos animais mais baixos e mesquinhos, transformando as pessoas no “cão de Pavlov“, HA expressou um preconceito inaceitável contra os instintos e os animais. Não há, no mundo animal, qualquer paralelo que ajude na compreensão dos campos de concentração. Pelo contrário, é típico de todos os nossos ancestrais mamíferos algum cuidado (no mínimo) com a cria, sem falar nas muitas expressões de solidariedade. O relato de Primo Levi (de sua estada em Auschwitz) gera a clara impressão de que o objetivo daqueles campos era, contrariamente, destruir o instinto gregário, reduzindo os humanos à situação dos répteis: essa espécie de “solidão coletiva”! Efetivamente, ali, a maioria das pessoas fora reduzida a uma situação reptílica e talvez esse seja o ponto mais dramático do relato: grandes períodos de quase total ausência de solidariedade entre os prisioneiros.

Sabemos bem que nosso cérebro pode ser considerado TRIUNO (Eysenck, “O Que é Neurose”): formado por porções muito primitivas (reptílicas); algumas compartilhadas com os mamíferos e outras mais especificamente humanas (racionais e que procuram pela lógica). As bases instintivas para o instinto gregário—mais importante do que o de sobrevivência individual, vide os estudos sobre o suicídio—são comuns aos mamíferos e têm origem nas porções correspondentes do cérebro. Nossas porções “mais elevadas”, ao contrário, são as únicas capazes de promover uma violência contra os interesses da espécie, em função dos individuais, gerando muitos dos principais dilemas humanos e seus dramas morais (ao impedir a maternidade, por exemplo).

O que parece ter ocorrido entre os germânicos (mas não apenas) foi uma ligação direta entre os dois extremos: RACIONALIDADE por um lado, e CONDUTAS REPTÍLICAS, por outro. A origem da aberração nazi-fascista estaria, então, não na perda da racionalidade, como Primo Levi também sugere ao final de seu relato, mas no fato dessa racionalidade ter se voltado contra os instintos que garantiram o surgimento e preservação dos mamíferos. Teria havido, então, um colapso desses mesmos instintos. Como a RAZÃO não pode se apoiar em si mesma, estava condenada a cair nas malhas das condutas reptílicas, situação na qual os indivíduos só precisam uns dos outros para sua reprodução: “(Os nazistas buscavam)…fabricar um tipo de espécie humana que se assemelhasse a outras espécies animais, cuja única ‘liberdade’ consiste em reproduzir e ‘preservar a espécie'” (HA, “As Origens…”). Faltou dizer que, entre essas espécies, não estão os mamíferos—capazes, dentre outras coisas, de brincar—mas os répteis em geral, entre os quais é muito raro haver algum cuidado materno com a cria. Por essa razão, não haveria, entre eles, qualquer núcleo primitivo capaz de servir ao desenvolvimento da moral: “A total dependência do ser humano ao nascer, converte-se, assim, na fonte primordial de todas as motivações morais” (Freud, “Uma Psicologia para Neurólogos”)

Dirão alguns que os nazistas violentavam esses instintos primordiais “apenas” em relação aos “não arianos”, mas essa não é a verdade. Um dos objetivos das “Bund Deutsche Mädel” (“Liga de Moças Alemães”) era “produzir” mais arianos para a Alemanha; nada mais do que uma forma disfarçada de violentar aquele mesmo instinto primordial, submetendo-o às “necessidades” do partido nazista. Portanto, as primeiras aberrações nazistas foram cometidas (e sofridas) por eles mesmos. Pensar de outra forma seria imaginar que os nazistas não pertenciam à nossa espécie. Estaríamos cometendo um erro muito parecido com o deles.

“Se o vínculo preservador dos instintos não fosse infinitamente mais poderoso do que a consciência…a humanidade teria sucumbido aos seus juízos absurdos… Pensamos na consciência como o centro do ser humano, o duradouro, o eterno, o primordial…a unidade do organismo! Esta ridícula supervalorização do que seja a consciência….! (Nietzsche, “Gaya Ciência” ou “O Alegre Saber”, Aforisma 11).

Os germânicos, desde os maiores poetas e filósofos até o nazista mais abjeto, moveram-se no sentido oposto. Tanto atacaram esses instintos; tanto deles se envergonharam—Freud, inclusive, em seus anos de decadência—que prepararam o caminho para que a “RAZÃO SUBLIME” se tornasse instrumento e artífice da maior aberração que a humanidade já conheceu. Quem não se enternece diante dos cuidados maternos de uma mãe orangotango? Quem pode ficar indiferente às brincadeiras de um gorila “costas prateadas” com os adolescentes de seu grupo? Esquecer disso é aceitar a idéia de que fomos feitos “à imagem e semelhança…”: tudo o que há de elevado em nós teria, então, origem fora da vida e da escala evolutiva. Há mesmo muitos resquícios pré-darwinianos entre nós! Nos primórdios de seu caminho para a Teoria da Evolução, Darwin se preocupou especialmente em demonstrar que os sentimentos (e sua expressão) nos primatas eram muito semelhantes em relação aos dos humanos.

Achar que tudo deve ser submetido apenas “à voz da Razão” (Primo Levi, “É Isso um Homem?”) é abrir o caminho que leva ao totalitarismo, à eugenia, etc. Quando alguém admite discutir, por exemplo, se uma raça é superior a outra, deu o primeiro passo naquela direção: “Não se pode dizer A sem dizer B e C, até o fim do mortífero alfabeto…A tirania da lógica (camisa de força) começa com a submissão da mente a um processo sem fim…Como um poderoso tentáculo, ela (a lógica) nos aperta por todos os lados, como um torno…” (HA, idem). Foi, muito provavelmente, esse choque entre seu culto à razão e a condenação à lógica (sua máxima expressão) que levou HA a concluir: nossa salvação somente poderá vir de uma espécie de milagre. Não se referia, porém, a fenômenos religiosos, mas a algo que estivesse completamente fora do raio de visão dos filósofos e outros estudiosos. E esse “milagre” estava tão próximo: em cada um e no próximo; em nossos instintos e, especialmente, na necessidade que temos uns dos outros!

Por fim, pensamos que nossa maior garantia, como espécie digna de habitar e influenciar a Terra, não está em submeter tudo ao muito arrogante “TRIBUNAL DA RAZÃO”, mas em um respeito intuitivo a alguns limites, além dos quais haveremos de cair em outros abismos. Quando, por exemplo, avaliamos o cariótipo de um feto, buscando eliminar anomalias, damos um primeiro passo muito perigoso em direção à eugenia. Perguntamos: o mundo seria mais ou menos rico sem as pessoas que carregam uma trissomia do Cr. 21? Aqui, não se devem aceitar: banalizações ou submissão a um falso e arrogante cientificismo. Há que sempre desconfiar da “camisa de força da lógica”.

*Para que essa expressão não fique “ao relento”, ou seja entendida como mero “clichê”—até porque há muitos “inconscientes por aí”—o conceito tem por base a idéia de uma “ORGANIZAÇÃO FUNCIONAL AUTÔNOMA”, forjada para além (ou aquém) da consciência racional, de maneira a levar a efeito necessidades que essa mesma consciência é incapaz de admitir ou aceitar. Até os últimos momentos do IIIReich, Hitler mantinha em seu “bunker” uma maquete da “cidade ideal” a ser construída. No último dia do Reich, Frau Goebbels assassinou seus seis filhos (cujos nomes começavam com a letra H) dizendo não querer viver, nem deixar que os filhos vivessem, em um mundo sem o seu Führer e seu ideário: nada além de um “leve verniz” de virtude, encobrindo as piores aberrações. Estamos convencidos, aliás de que quanto mais “organizado” é esse Inconsciente, mais distante é da verdade do personagem expresso socialmente. Toda a educação ocidental tem sido voltada para que escondamos “nossas vergonhas”. Tudo o que aprendemos foi a refinar nossos disfarces.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ