Temas e Controvérsias

HANNAH ARENDT: TOMANDO A PSICOLOGIA PELA ONTOLOGIA

(O PAPEL SOCIAL DA PSICOLOGIA E DA PSIQUIATRIA-II)

“…Se nada mais do conhecido por nós determina o curso do mundo, então podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá acontecer por meio de uma espécie de milagre” (HA: O Que é Política?)

O mundo conheceu poucas individualidades tão marcantes quanto a dessa judia nascida na Alemanha. Esteve muito próxima de alguns dos mais respeitados pensadores de sua época, de quem foi amante (Heidegger) e aluna (Jaspers, Husserl e outros), conseguindo manter para com eles uma independência surpreendente. Foi, além disso, uma crítica extremamente sutil de sua atitude em relação ao mundo em que viviam, sem parecer que os quisesse desbancar, criando novas “correntes de pensamento”. Talvez seja essa, aliás, a explicação para o fato de nunca ter aceitado ser chamada de “pensadora” ou “filósofa”. Somente de uma mente feminina se poderia esperar tantos cuidados e tanta sutileza!

Mais fácil de entender foi seu esforço para se manter à parte da psicanálise, cuja influência já tomara o mundo no seu período de vida. Seu culto à racionalidade (como veremos em próximo texto) não lhe permitiu aceitar que o mundo e as relações humanas sejam governados por forças INEVITAVELMENTE, não muito racionais. Nem sua própria ascendência judaica parece ter sido suficiente para que ela se interessasse pela obra de Freud. Pelo contrário, tentou desferir o que poderia ter sido um golpe mortal sobre toda a psicologia (ver epígrafe do artigo anterior): como não existiria o homem, mas os homens em sua relação, os esforços da psicologia individual estariam SEMPRE desviados de foco. Uma vez que, nem na solidão, existiria esse ser “não divisível” (“individuum”, pois somos seres “dividuum”, Nietzsche, “Aurora”), todos os esforços deveriam se voltar para o estudo das relações sociais. Por isso, a psicologia estaria condenada a meramente tentar “ajustar” as pessoas às condições apresentadas, em vez de participar de sua crítica.

Essa crítica, entretanto, está totalmente desviada de foco e deveria ter sido dirigida à ONTOLOGIA—“estudo do ser enquanto ser…procurando por essências sem qualquer relação com a ordem contingente do mundo” (“O que é Ontologia”, Maclinyre anda Campbell—tema principal da obra de HEIDEGGER. É a ONTOLOGIA e não a PSICOLOGIA quem tenta estudar as pessoas fora de suas relações. Mesmo com toda a agudeza de seu olhar, HA não conseguiu se libertar das amarras de suas antigas relações. É pena que não tenha feito a crítica direta do EXISTENCIALISMO que mais se parece com uma desculpa para a alienação diante do mais sombrio dos mundos.

“…Passar ao largo das experiências fundamentais de nossa época, seria como se não tivéssemos vivido, em absoluto, no mundo que é o nosso” (idem)

Se, em linhas gerais, a crítica às intervenções individuais tem fundamentos, onde estaria, então, o seu erro (ou limitação) e, em consequência, a justificação para a existência de um muito nobre papel para a psicologia? SOMENTE AS GRANDES INDIVIDUALIDADES—aquelas que têm a coragem de contrariar as crenças de maiorias—CONSEGUEM VENCER A INÉRCIA TÍPICA DAS MASSAS AMORFAS. Somente a partir do exercício da crítica—dolorosamente individual e solitária—pode alguém influenciar substancialmente as relações à sua volta, ainda que pagando, por isso, um preço enorme. É bem verdade que, mesmo esses, não conseguem escapar às condições que lhe são apresentadas pela história e pelas circunstâncias. Quem, senão a psicologia, através da compreensão desses efeitos sobre a mente das pessoas, poderia participar desse processo de individuação?

Essas INDIVIDUALIDADES não seriam apenas, nem principalmente, as que alcançaram reconhecimento. Não! O termo se refere principalmente às muitas pessoas anônimas que são como que baluartes das diversas culturas, tão ameaçadas pelos esforços de “globalização”. São elas que garantem que um povo não se transforme em uma massa amorfa, manipulada por governos a serviço de interesses financeiros. A aniquilação desses “núcleos estruturantes”, criados por essas pessoas (ou pequenos grupos, e fora das famílias, diga-se de passagem) foi imprescindível para a afirmação do poder nazi-fascista. São também essas as pessoas cuja cooptação pelo “Sonho Americano” tem impedido uma organização coletiva e social entre os norte-americanos. Assim são gerados os “DESERTOS” de que fala HA. Quando, porém ela separa a humanidade entre o DESERTO e o OÁSIS—“campos da vida que existem independentes…das condições políticas…Se não estivessem intactos, não saberíamos como respirar“—expressa apenas seu aprisionamento à cultura e a um fenômeno tipicamente alemão, embora não exclusivo. Disso talvez decorra a condenação que fez à psicologia.

Quase todos os poetas alemães viveram nesses “desertos”, à procura de um “oásis” (Nietzsche, Höderlin e tantos outros). O tema mais recorrente dessa grande poesia (além do amor, é claro) é a do estrangeiro em sua própria terra; um andarilho sem pátria* (musicadas por Schubert, Schumann e Brahms)

“Estrangeiro aqui cheguei/Estrangeiro daqui me vou…” (WMüller, “Winterreise”)

“Caminho como um estrangeiro/De terra a terra, desconhecido e sem pátria…” (JGSeidl, “Der Wanderer an den Mond”)

“Sou um estrangeiro acima de tudo…” (S. von Lübeck, “Der Wanderer”)

“Em direção à pátria…/A terra mais distante..”(HHeine, “Wanderlied”)

“Meu pai e minha mãe estão mortos…/Ninguém mais me conhece na minha terra” (JFEichendorff, “Im der Fremde”, “No Estrangeiro”).

“Conheces o país onde florescem as laranjeiras..? Para lá! Para lá….!” (JGGoethe, “Mignon”)

Outro traço tipicamente alemão, e também muito recorrente na poesia, é a busca de exílio em um mundo ideal, totalmente afastado do mundo físico e da sociedade:

“…Afunda mundo!/E não estrague nunca, nunca/Os doces corais etéreos ( JMayrhoffer, “Auflösung”)

“Ah! Os céus sobre mim/Nunca se aproximarão da terra” (FSchiller, “Der Pilgrim” )

“…Fecha os duros ares da realidade/E dá teto somente aos doces sonhos…”(F.Rückert, “Greisengesange”)

O mais curioso, é que esse culto ao IDEAL, entre os alemães, vem sempre acompanhado da apologia da RAZÃO e condenação dos instintos que compartilhamos com os mamíferos em geral, tendência da qual Kant foi o maior epígono. Como não se deram conta da contradição aí existente? Que racionalidade pode haver nessa mutilação da realidade? A racionalidade obrigaria, por definição, à tomada das coisas simplesmente como elas são. Esse é o SEGUNDO ERRO (ou limitação) de HA no julgamento dos papéis que a psicologia pode exercer: seu aprisionamento à RAZÃO não permitiu a aceitação de que nossos atos sejam determinados por necessidades desconhecidas, acessíveis apenas através da INVESTIGAÇÃO PSICOLÓGICA.

(A conclusão exigirá um terceiro texto)

*Já entre nós, desde G. Dias até M. de Andrade, passando pelos nossas grande músicos-poetas—de Chiquinha a Gonzagão e Gonzaguinha—a tendência tem sido oposta. Sua tônica é o esforço de aproximação à gente simples do povo; a aplicar sua linguagem; dar-lhes uma voz; gravar seus ritmos, e assim por diante. Esse talvez seja o nosso maior patrimônio cultural.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ