Temas e Controvérsias

HIPER OU HIPOBULIA NOS “BORDERLINES” E NA MANIA?

Sempre que os livros de referência para qualquer forma de saber fazem afirmações diametralmente opostas, em relação a algum tema central desse mesmo saber, podemos afirmar que estamos diante de um grave problema conceitual. É o que se passa com a caracterização da situação da Vontade nos estados maníacos e nos “borderlines”. Se, por um lado, autores como K. Jaspers e N. de Mello concluem estar a vontade gravemente diminuída nessas situações, os autores do capítulo correspondente em Kaplan e Sadock (Yager e Gitlin) afirmam exatamente o oposto:

“Pathologically heightened will, seen primarily in manic states, is characterized by excessively intense desires and an overly facile capacity to make decis ions, with complex questions being decided on in an instant.”

Estamos convencidos de que esse aparente impasse conceitual teve sua origem no desconhecimento da distinção necessária entre desejo e vontade. Quem primeiro estabeleceu essa importante diferença foi I.Kant (“Fundamentação da Metafísica dos Costumes”), para quem a vontade seria:

“…uma faculdade bem diferente do simples desejar; a saber, é a faculdade de se determinar a agir como inteligência, segundo as leis da Razão, independentemente dos instintos naturais”

Dessa forma, o desejar seria apenas o primeiro momento da função da vontade, cuja primeira ação seria promover exatamente algum adiamento em relação ao desejo inicial. É esse, aliás, o sentido que a linguagem popular atribui à expressão “ter força de vontade”, uma vez que é sempre aplicada para expressar uma espécie de vitória contra um impulso ou desejo inicial (uso de substâncias, comer demais, sedentarismo e assim por diante). Quando, naquele muito equivocado trecho do mais importante livro-texto da psiquiatria moderna, os autores se referem à “capacidade de tomar decisões” dos maníacos, deviam, em verdade, inverter completamente seu raciocínio, pois o que é evidente, nesses casos, é a sua INCAPACIDADE para adiar essas decisões e melhor avaliar as situações.
Por isso mesmo, se tivéssemos que representar em uma figura todo o processo que implica a vontade, recorreríamos a uma espécie de “arco da vontade”, uma vez que permitiria ilustrar, não somente suas 4 fases, como também o “salto” por cima (ou por baixo) delas que costuma ocorrer nos estados assinalados (Amaral M. 2004):

Arco da vontade
Arco da vontade

Dois equívocos podem acontecer na interpretação dessa formulação:
1-considerar que o fenômeno da vontade é exclusivamente humano, quando, em verdade, em qualquer processo decisório, referente à luta ou fuga, por ex emplo, esse “arco da vontade” também é cumprido.
2-considerar que todo o processo é necessariamente muito demorado, uma vez que seria “muito racional”. Estamos convencidos de que boa parte dele é intuitivo e, por isso mesmo, pode gerar convencimentos muito rápidos e decisões adaptativas para o indivíduo e para a espécie.
Não é novidade para ninguém a aversão que o pragmatismo norte-americano desenvolveu para com toda filosofia um pouco mais especulativa. Em muitas áreas, isso representou um ganho considerável. No que se refere ao funcionamento da mente humana, entretanto, gerou insuficiências gritantes. Efetivamente, parece não haver muito espaço, entre as novas gerações, para as muito ricas lucubrações de Jaspers e N. de Mello. Havia mesmo a necessidade de objetivar o conhecimento, mas os norte-americanos agiram como a ama desastrada que, depois de lavar o bebê, atirou-o fora junto com a água utilizada. De qualquer maneira, e um pouco mais a diante no mesmo capítulo, aqueles autores quase chegaram ao proposto pelos eminentes psicopatólogos quando afirmaram que os pacientes maníacos:

“…share much in common with decreased will in that the intense desires and quick decisions often reflect impulsiveness,…an escape from true willing and decision making…”

Quem sabe se, na próxima edição, eles não resolverão, por fim, aquele dilema quase “hamletiano”?

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ