Temas e Controvérsias

Mortalidade entre “DEPENDENTES QUÍMICOS”

O Globo de domingo (28/11) trouxe matéria sobre orientação de familiares de “dependentes químicos” por parte de um conhecido profissional da área (o médico Jorge Jaber, em associação com a PM-RJ), da qual constam algumas afirmações no mínimo estranhas:

“No primeiro ano após a primeira internação, 10% dos dependentes químicos morrem. No segundo ano após a internação, a mortalidade sobe para 20%…..O dependente precisa de uma vida dura. Não existe recuperação sem dor”

Sempre que leio matérias do gênero, espero por algum esclarecimento por parte do próprio e se há repercussão por parte de outros especialistas. Quando é um artigo publicado sob a rubrica OPINIÃO, tudo fica apenas associado a uma opinião e cada um tem direito de ter a sua. No caso, entretanto, especialmente pela instituição envolvida, tive a impressão de que essas afirmações não poderiam passar simplesmente em branco.

Antes de mais nada, não consegui entender a relação que há entre as duas sentenças. Se aqueles dados são verdadeiros, é difícil imaginar uma vida mais dura e dolorosa do que a dos dependentes. Ademais, há ali uma vulgarização da abordagem da mortalidade que considero inaceitável. Os estudos epidemiológicos fornecem dados pontuais referentes a uma sociedade específica. São muito úteis, mas sua generalização é muito perigosa. Eles não apreendem nem “amarram” a realidade, tornando-a imutável. Todo o interesse parece ter sido assustar os ouvintes e, como diz um prestigiado colunista: “parece terrorismo…e é.”

O texto, aliás, é tão mal redigido, que poderia dar a entender que a própria internação, em si, é muito perigosa e um grave fator de risco para a morte. Além disso, os tais 20% seriam do total inicial ou dos sobreviventes ao primeiro ano? Como está, há a sugestão de haver uma elevação contínua do risco anualmente para o grupo pesquisado. Da dependência a que substâncias estão se referindo: as ilegais ou também as de uso legal? Parece ainda que são mortes pelo uso específico e, em relação à maconha, por exemplo, não conheço registros de mortes somente pelo seu uso.

Com relação à tal vida dura e à apologia da dor, há ali uma vulgarização também inaceitável. É fato conhecido o de que os dependentes costumam ter por traço de personalidade o não suportar frustrações e dores, especialmente as de natureza moral. Essa apologia, entretanto, é muito perigosa, até porque, e por definição, eles continuarão a fugir delas, a não ser que sejam confinados. E depois de confinados, o que seria a tal “vida dura”? Trabalhos forçados ou coisas ainda piores?

¹Talvez por um excesso de escrúpulo, deixamos de dizer a palavra praticamente obrigatória: tortura. As folhas de jornal se encarregaram de fazê-lo. Uma certa “Clínica” New Life, que recebeu um milhão e meio de reais da prefeitura paulistana para “tratar” pessoas com “dependência de substâncias”, foi denunciada por mais de 50 pacientes e familiares por tortura e maus tratos (Fl de SP 19 dez). Disse o seu diretor: “Denúncias de pacientes involuntários não devem ser levadas a sério…” Tudo começa e termina por um certo tipo de discurso. Enquanto o citado no corpo do texto, justifica, este último escamoteia.

Confessando minha pouca competência para intervir nos acasos específicos, entendo que os PRINCÍPIOS que devem reger essas intervenções terapêuticas são os mesmos aplicados no atendimento à dor moral em geral: acolhimento, compreensão e ajuda a enfrentar as dores inevitáveis da existência, quem sabe até mediante eventuais confinamentos consentidos! Fazer apologia da dor em si, parece-me algo distorcido. O pior de todos os problemas costuma ser a sensação de vazio que todos nós podemos, em algum momento, sentir profundamente.
“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar
Que o ar buscou ocupar o lugar do vinho
Que o vinho buscou ocupar o lugar da dor…”
C. Buarque e G Gil

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ