Temas e Controvérsias

“O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO”: TÍTULO-ENIGMA

ALEGORIA, PROSA, POESIA E O PROCESSO PRIMÁRIO DO PENSAMENTO (FREUD)

Certos títulos de romance soam como verdadeiros enigmas. Alguns são de fácil decifração, como  “O VERMELHO E O NEGRO” de Stendhal: cores das vestes típicas das duas atividades (clerical e militar) que podiam levar um jovem ambicioso à ascenção na França dos séculos XVIII e XIX. Outros intrigam geracões inteiras de pessoas ligadas à literatura, como “O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO”, J.D.Salinger'(1919-2010). O efeito desse enigma é de tal ordem que, sem que houvesse uma intenção específica, o próprio título passou a ter vida própria. Quem vai ao livro, chega até quase o seu final sem vislumbrar alguma explicação. Finalmente, o protagonista cita o poema que o inspirara (“Coming Through a Rye”, R.Burns, Escócia, 1759-1796) e tudo parece que vai se esclarecer. Quando, porém, relata a espécie de “sonho em vigília”, disparado pela lembrança dos versos, aquilo que, a princípio, parecia apenas uma charada, ganha contornos de absurdo, dignos da quase transposição do umbral da loucura:

“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto—quer dizer, ninguém grande— a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar para onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas seria a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice….”  

Como costuma acontecer em casos parecidos—válido também para o entendimento das falas dos pacientes psicóticos—a falta de explicação gera mal estar e faz ativar a preguiça intelectual que costuma surgir frente ao aparentemente incompreensível. Passar a considerar tudo uma simples charada, inconsequente e aleatória, torna-se quase uma consequência natural. Quando o fazemos, entretanto, deparamo-nos com um dilema: como é possível que a mera arbitrariedade tenha gerado um dos romances mais importantes de todo um século? Aquela não seria uma conclusão digna de pessoas ligadas à arte. Podemos até deixar o enigma de lado, à espera de uma melhor inspiração. Não há, porém, como negá-lo. Já as construções mentais dos psicóticos, muitos ainda as encaram como apenas aleatórias.

Vencida a etapa de reconhecimento do enigma, voltamos ao problema da sua decifração. A imagem de um abismo, e também a responsabilidade por todas as crianças—as outras gerações já estariam como que perdidas”—fornecem-nos uma pista: HOLDEN (o “herói”) sente-se como uma espécie de “macho alfa”, mas sem alcatéia, matilha, bando ou tribo para liderar/cuidar. Precisa, como todo macho alfa, que precisem dele; sente-se responsável por todas as pessoas e até culpado diante de mortes que não consegue evitar (do irmão mais novo e também de um colega).

Qualquer sociedade pode engendrar pessoas com esse perfil. Quando, entretanto, isso ocorre em meio à explosão da riqueza, como nos EUA dos anos 1940/50, e essa pessoa só percebe egoísmo e alienação à sua volta, uma grave desadaptação há de ser inevitável. Se tem uma superioridade intelectual, e formação compatível, criam-se as condições para o surgimento da obra de arte. Muito significativamente—como um Quixote moderno—Holden (nome associado a “abraçar, agarrar”) bate-se contra tudo o que é mais representativo do ambiente de seu país: o cinema (Hollywood, em especial), mídia, automóveis, etc.
Até esse ponto, as associações não são muito difíceis de justificar. Agora, os avanços haverão de ser como se andássemos em uma “corda bamba”. Não escrevemos visando concordâncias e quando elas vêm fáceis demais, desconfiamos.
Uma tradução livre de alguns dos versos do poema talvez ajude: “…Jenny está toda molhada, pobre criatura./Jenny raramente está seca:/ Elameou todos os seus corpetes/Atravessando o campo de centeio!/Atravessando o campo de centeio, pobre criatura,/ Elameou todos os seus corpetes…/Quem encontra um semelhante/Atravessando um campo de centeio,/Deve beijar esse outro ser/Uma criatura tem que chorar?…”

Quem esperava por alguma explicação linear, decepcionou-se. Os críticos, diante dessa linguagem, costumam recorrer à “musicalidade do poeta“—que é verdadeiramente muito intensa—como uma desculpa para evitar um esforço maior para sua compreensão. Enfatizando a musicalidade, deixam de lado as produções e associações um dia chamadas “processo primário do pensamento” (Freud), típicas da linguagem poética, especialmente lírica: “É em vão que os muito racionais batem às portas das Musas” (Platão). Adoramos a musicalidade; sem ela não há poesia, mas deve haver algo mais, exclusivo da poesia, em sua relação com a música. No mínimo, há a palavra.

Passemos aos campos de centeio, trigo, milho e cevada. Costumamos louvar a agricultura e glorificar o pão, mas os estudos da evolução humana têm demonstrado que o início do cultivo intensivo dos cereais (há cerca de 6 a 7 mil anos, no O.Médio¹) determinou a maior reviravolta nas formas de organização social da história da humanidade. Foram os campos de cereais que promoveram: a fixação dos povos; a acumulação de riquezas por uns poucos; a troca da linhagem matrilinear pela patrilinear (a família, como conhecemos hoje); o direito de herança; a miséria de muitos e a riqueza e poder de alguns sobre os demais, além da escravidão². Até então, os humanos viviam em tribos nas quais todos tinham compromissos com os demais. Éramos, predominantemente, caçadores e coletores (“Hunters and Collectors”)Muito significativamente (ou ao acaso?) logo no início do romance, Holden compra um chapéu de caça que veste durante quase toda a narrativa, até em situações nas quais seria completamente inadequado.
Outra consequência daquela acumulação de riquezas por alguns homens, foi o início da prostituição. Dizem alguns, ter sido a prostituição a mais antiga das profissões, mas há nisso uma incorreção: ela foi a primeira profissão das mulheres e surgiu na primeira sociedade submetida ao poder e riqueza masculinos. A mesma sociedade que produziu os primeiros escravos, engendrou a prostituição. Desde então, quantas “Jennys” elamearam-se atravessando campos de centeio”?! Há mesmo muitos “abismos” nesses belos campos.
“…A culpa é nossa; é tua, ó rico! É do teu ouro/Mas é no lodo que o mar esconde seu tesouro…” (“Oh! Não Insulteis” V. Hugo, em defesa das prostitutas)
Quando os ingleses e irlandeses ocuparam a América do Norte, todas as tribos locais eram nômades e viviam naquele mesmo estágio. Seu modo de vida foi simplesmente esmagado. Muito significativamente (ou ao acaso?), um dos principais interesses do menino/adolescente Holden era exatamente visitar o Museu de História Natural, onde admirava os modos e hábitos dos antigos habitantes da América. E, por quantas vezes, reafirma seu prazer em ver aquele mundo como que paralisado, na mesma situação, anterior ao massacre promovido pelos seus próprios ancestrais! Hoje, finalmente, o mundo passou a ver aquela tragédia um pouco para além dos filmes de Hollywood.
Os grãos estão também relacionados a uma das mais trágicas alegorias bíblicas: a história de Caim (um agricultor) e Abel (um pastor). Deus teria recebido, de muito bom grado, a oferta do pastor Abel (atividade sempre associada ao lirismo, música e poesia) e recusado, rudemente, os grãos oferecidos pelo agricultor Caim. Com inveja e ódio, Caim mata Abel e é condenado a vagar pelo mundo, levando um estigma consigo (espalhando a agricultura?). Há muitas outras interpretações para a alegoria bíblica, mas ela nos parece representar o quanto a agricultura intensiva voltou os seres humanos uns contra os outros. É impossível pensar o mundo moderno sem a agricultura. Com ela, entretanto, cresceram também as sementes das “Vinhas da Ira”³. Será que a humanidade está condenada a, eternamente, “assassinar uns tantos Abel” e “prostituir umas tantas Jennys”? Talvez, um dia, entendamos que o preço tem sido alto para todos e que a solidariedade só pode trazer vantagens.
“…Do mal, será queimada a semente… (“Juízo Final”-N. Cavaquinho e Elcio Soares)

As grandes obras de arte estão sempre para além da nossa compreensão plena. Partindo, entretanto, do princípio de que são grandes representações do seu próprio tempo, ainda que através de alegorias, alguns avanços se podem fazer nessa compreensão.

¹Período em que começam a surgir os primeiros grandes templos, culminando em “Stonehenge”, há cerca de 5000 anos. Houve também a troca da tomada da lua referência temporal; o culto ao sol (astro da agricultura) e às estacões do ano.
²Entre nós, a escravidâo foi determinada pelo cultivo da cana de açucar. Daí as expressões “entrar em cana”, “cana dura” e outras. “…Quando me prendero/No canaviá/Cada pé de cana/Era um oficiá…” (M.Bandeira, “Trem de Ferro”). Por ironia, o que gerou o suplício, trouxe também a anestesia: a cachaça.
³John Steinbeck foi um outro autor muito preocupado com o drama da acumulação de riquezas por donos de terras. Um de seus mais prestigiados livros—onde teria parodiado a alegoria de Caim e Abel—tem por título “A Leste do Eden”. Há nisso uma forte sugestão de que, no Oeste, teria existido uma espécie de Eden, pelo menos até o seu massacre e destruição pelos brancos no século XIX.

(Refer: Ed. do Autor. Trad: A.Alencar, A. Rocha e J. Dauster;”The Catcher in the Rye”: Penguin Books, 1994)

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ