Temas e Controvérsias

O HUMOR, OS AFETOS E SEUS TRANSTORNOS

(um esforço para ordenar a nomenclatura sobre o tema)

Diante dos enormes problemas conceituais referentes ao tema (apontados e discutidos em textos anteriores), nada mais natural que exista uma enorme confusão terminológica na denominação dos transtornos correspondentes. Como consequência, os iniciantes na área sentem-se um pouco perdidos em uma espécie de “cipoal” de termos e expressões. Temendo complicar mais ainda a situação, mas não podendo nos furtar a avançar, apresentaremos nossa proposta, inspirada também em autores reconhecidos, de como usar melhor os mesmos termos que, historicamente, estão colocados.

Como já o dissemos, é na elevação (HIPERTIMIA¹) ou depressão (HIPOTIMIA) do HUMOR que se deve procurar a característica principal das síndromes maníacas e depressivas, respectivamente. Com isso, estabelecemos um patamar de clareza para discutir as demais manifestações. Essa é uma divisão puramente quantitativa e implica muitos cuidados na delimitação entre: manifestações sintomatológicas, por um lado, e variações extremas da normalidade (como o luto e o luto complicado), por outro. Disso decorrem significativos desdobramentos clínicos. Pode ser desastroso o tratamento de uma condição adaptativa e necessária (o luto) como algo patológico. Termos qualitativos (humor ansioso, “delirante” e irritável) também são usados, mas serão deixados de lado.

Antes de discutir os transtornos dos afetos, gostamos sempre de registrar QUE AFETOS ESTÃO PREDOMINANDO NO CASO. Dizer, como fazem muitos: “afetos congruentes com o humor” não nos parece suficiente. Implica a aceitação da relação aqui apresentada entre HUMOR/AFETOS, mas há que dar o nome específico aos afetos predominantes. No que se refere às duas síndromes citadas, podemos dizer que verificamos predominância de um certo grupo de afetos para cada uma delas, além de uma quase abolição (momentânea) de outros. Alegria, irritação, arrogância, soberba, raiva, autoconfiança², por exemplo, são afetos habitualmente elevados nas MANIAS, enquanto: tristeza, insegurança, medo, autodesvalorização, baixa autoconfiança, vergonha, culpa, nas depressões. Nos paranóides, predominariam: autoreferência, medo, suspicácia, raiva e outros.

Passando para os transtornos dos AFETOS, há que subdividir sua avaliação em:
1-INTENSIDADE-não temos notícia de que algum autor tenha cumprido a primeira condição para se falar em variações na intensidade para qualquer fenômeno: O ESTABELECIMENTO DE UMA FAIXA DE VARIAÇÃO DA NORMALIDADE. Partir do princípio de que “todos já sabem e entendem” revela preguiça intelectual. É bom observar, que, nas manias e depressões, não se verifica baixa ou elevação global da capacidade para responder afetivamente. O que ocorre, como dissemos, é a predominância de alguns afetos sobre outros, determinados pelo tônus mais permanente do humor subjacente. Para que se tenha uma idéia da utilidade dessa formulação, ela permite assinalar, para um mesmo paciente que apresente humor moderadamente deprimido, o surgimento de um afeto de alegria diante de uma boa notícia. Nesses casos, porém, o “pathos” depressivo do humor subjacente pode ser percebido por entre a alegria passageira. Baixa global dos afetos verifica-se entre esquizofrênicos residuais e nas síndromes apato-abúlicas (de natureza orgânica ou não). A observação dessa preservação da capacidade de expressar afetos pode ser muito útil do ponto de vista semiológico, pois permite a distinção entre pacs bipolares muito graves (e também desorganizados) e pacs esquizofrênicos residuais. Em uma gradação dessa baixa global na capacidade de expressar afetos podemos falar em: DIMINUIÇÃO, ESMAECIMENTO, APLANAMENTO, ESVAZIAMENTO, ABOLIÇÃO. Não apreciamos o termo EMBOTAMENTO, pois a metáfora com o botão de flor implicaria que a expressão dos afetos nunca se deu plenamente e não é esse o caso. O limite inferior para variações da capacidade de expressar afetos deve ser procurado entre as P. Esquizóides (desde que não as consideremos uma forma de esquizofrenia). Já um possível limite superior, há que se encontrar entre os histriônicos e “borderlines”.

2-REGULAÇÃO- apesar de haver apenas duas manifestações a descrever nesse ítem: LABILIDADE AFETIVA e INCONTINÊNCIA EMOCIONAL,  também aqui há controvérsias, uma vez que a combinação das palavras tem sido feita de forma diversa. Como dissemos, o termo EMOÇÃO deve permanecer fiel à sua origem (movere) e ser aplicado a situações nas quais são disparados atos e/ou condutas. Assim, o termo INCONTINÊNCIA fica muito mais adequado e elegante ao lado das emoções. Implica o disparo de atitudes potencialmente lesivas para o próprio e/ou outrem, as quais, na maioria das vêzes, só são contidas a partir de forças externas. Uma certa LABILIDADE faz parte das características fundamentais dos afetos em geral, por isso, a caracterização de um sinal ou sintoma a ela associado demanda algumas características mais específicas: 1-que essa expressão dos afetos seja muito desproporcional em relação às situações; 2-que oscile entre extremos na mesma dimensão (riso/choro; ódio amor e outros) e, 3- que essa oscilação seja muito rápida.

3-QUALIDADE- encontramos aqui uma concordância maior entre os diversos autores, mas, ainda assim, cabem ainda algumas dúvidas. PARATIMIA, segundo o prefixo, implica uma expressão afetiva “ao lado”, em desacordo com o contexto e/ou idéias expressas e, por isso, foi também muito bem denominada DISSOCIAÇÃO IDEO-AFETIVA. Sua manifestação mais frequente, porém, os assim chamados “risos imotivados”, devem ser redenominados para RISOS DESCONTEXTUALIZADOS, uma vez que, em princípio, nada é imotivado. Além disso, quem somos nós para julgar se alguém tem ou não motivos para rir? A existência de NEOTIMIAS nunca nos convenceu completamente. Falar de sentimentos “totalmente novos” parece-nos pouco adequado, uma vez que, em princípio, eles são sempre novos, apenas mais ou menos semelhantes a outros já experimentados. Quando usamos esse termo, referimo-nos, em verdade, à expressão de sentimentos com as quais não empatizamos. A AMBITIMIA (AMBIVALÊNCIA AFETIVA) convence-nos menos ainda. É da índole dos afetos, sua mistura ou sucessão rápida. Implicaria afetos opostos: sucessivos ou simultâneos? Se em sucessão muito rápida, devemos estar diante de uma P. “Borderline”. Se parecem simultâneos, o que existe, em verdade, é um esvaziamento dos afetos. O fotografia, apresentada por Bleuler, de uma paciente que sorria com a boca e chorava com os olhos, sugere muito mais a presença do quadro que foi chamado MORIA³, nos quais aquele esvaziamento dos afetos é quase total, do que a “ambivalência” assinalada. Tanta mistificação foi feita em relação esse conceito e tantos erros ele induziu! Inclusive a idéia de que os “borderlines” seriam limítrofes da esquizofrenia, um dos erros mais graves cometidos pelo saber psiquiátrico através dos tempos.

¹Kurt Schneider aplica esses termos e conceitos na mesma acepção. Estar a seu lado é sempre bom. Os autores que tratam o HUMOR como mero somatório dos afetos, em verdade, retiram do conceito toda a sua importância.
²Os autores que usam os termos AFETOS e AFETIVIDADE como expressão primordial nesse capítulo (ver texto anterior), ficam sem um termo para designar essas expressões e terminam por deixá-las de lado.
³Não temos ceteza quanto à origem do termo, mas parece aludir às MOIRAS gregas (ou as Parcas romanas): deusas que comandavam os destinos dos homens, a quem nem Zeus podia contrariar. A analogia com a total incapacidade de se determinar, até nas coisas mais comesinhas, parece-nos sugestiva.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ