Temas e Controvérsias

O PAPEL SOCIAL DA PSICOLOGIA E DA PSIQUIATRIA-I

“A psicologia tenta ‘ajudar’ os homens a se ‘ajustarem’ às condições de vida no DESERTO…(Mas se é) justamente porque SOFREMOS nessas condições que ainda somos humanos e inteiros…! O perigo reside em que nos tornemos verdadeiros habitantes do deserto e passemos a nos sentir à vontade nele“. (Hannah Arendt, “O que é Política?”)

Em uma sociedade que prioriza números e tudo julga em função da riqueza, a pergunta quanto ao papel social de cada profissão encontra-se sempre no centro do interesse social. Os médicos e psicólogos não produzem esse tipo de riqueza, mas teriam por função recuperar e preservar a mão de obra, de maneira a que possa continuar a produzir números para o PIB. Teríamos, então, um papel indireto, semelhante aos dos motoristas de ônibus, que levam as pessoas aos locais onde a “riqueza será produzida”. Se fôssemos apenas “mão de obra”…!!

Do ponto de vista da recuperação da capacidade física, esse papel é simples e claro. Quando, entretanto, falamos da recuperação do órgão capaz para a crítica, tudo ganha uma nova significação. Nesse caso, aquele mero “ajuste” implicaria a perda da capacidade que levou à nossa autodenominação como espécie: “homo sapiens”. Por isso, a criação de uma categoria denominada “Transtornos de Ajustamento”, nas Classificações mais usadas no mundo, expressa a perda de algum importante referencial em nossa função social. Tratando os seres humanos como se fossem apenas parafusos a serem ajustados em uma enorme máquina, tornamo-nos “agentes da desertificação¹” na sociedade.

Essa não é uma questão meramente teórica, atingindo em cheio nosso dia a dia. Estamos sempre diante da pergunta: como ajudar alguém no sentido da sua libertação; perder o medo de sintonizar com suas disposições mais profundas²? Como enfrentar certas dores inevitáveis nesse processo? Como ajudá-las a suportar uma certa solidão que decorre, NECESSARIAMENTE, da superação de alguns modelos de relação pessoal e de grupos? O problema maior é que essas são as mesmas questões evitadas pela imensa maioria, inclusive nós mesmos. Por tudo isso, consideramos a sentença: “TORNA-TE O QUE ÉS!” (“Gaia Ciência: O Alegre Saber”, Nietzsche) a mais importante de toda a história da filosofia. Todas as tentativas de “melhorar o ser humano” falharam. Mais do que isso, desembocaram nas piores perversões. Talvez seja a hora de simplemente aceitar cada um como é. A sociedade tem todo o direito de se proteger em relação a alguns deles e até ao encarceramento provisório daqueles que cometerem alguns crimes, mas que se abandone a idéia de “reformatório”. Seres humanos não são “reformáveis”.

Alguém já disse que o psicoterapeuta atuaria mais como um escultor (retirando) do que como um pintor que adicionaria coisas a uma tela. Há, entretanto, nessa metáfora, um vício moralista e “educativo”, entranhado nesse “construir”, a partir do que uma pessoa nos apresenta. Melhor talvez seja a “metáfora da cebola” (Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”): ajudar a “descascar” as diversas camadas em que tentamos disfarçar e esconder nossas disposições mais profundas, passando a atuar segundo elas, apesar das dores e dificuldades. Também a propósito da “cebola”—e sem esperar encontrar qualquer “caroço”—são previstas muitas lágrimas e lutos nesse processo. Inútil parece ser a velha procura por um indefinível “puro reino das essências” (Merleau-Ponty e outros), de inspiração pré-Renascentista, e seus conceitos para além (ou aquém) das relações humanas: alma, Deus, etc. Preferimos pensar na existência, em cada um de nós, de um “GRANITO” (Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”) formado a partir das relações humanas mais primordiais e que demarcaria nossa individualidade. Sua quebra, implicaria nosso desaparecimento, seja por morte ou demência.

Se tivéssemos que descrever a face do “INFERNO” nas relações humanas, diríamos “residir” nos esforços para “modificar as pessoas”, em geral. O que dizer, então, se essas mudanças forem para atender algum padrão de comportamento mais ou menos aceito nas sociedades? O instrumento efetivo há de ser: compreender as pessoas e aceitá-las como são. Quem sabe, assim, elas não conseguirão desenvolver algumas características valorizadas socialmente? Quando dizem: “Ele está outra pessoa!”, diante de um filho que faz um esforço sobre humano para agradar, estão dizendo: “Eu não o amo como v. é; apenas quando v. finge ser o que eu quero que seja!“. É em bases desse tipo que se assentam muitas relações familiares.

Do ponto de vista social, arriscaríamos dizer que é no mesmo preceito moralista de “educar segundo um modelo para criar cidadãos exemplares” que deve ser procurada a fonte para os piores males da humanidade. A idéia de Aristóteles de que seríamos, ao nascer, uma tábula rasa onde a educação “escreveria”, é sua origem. Seu total fracasso na tentativa de educar Alexandre nos preceitos da moderação, deveria ser motivo para o abandono dessa crença.

Os alemães levaram aquele esforço às últimas consequências. Por isso, Nietzsche comparou suas escolas, exército e igrejas às “menageries”: locais onde se adestram animais para o circo. Por que o interesse no fenômeno alemão? Ao que tudo indica, em nenhum outro lugar a “educação” a qualquer preço atingiu tantos extremos. Foi sob Frederico I, da Prússia (1657-1713), que se lançaram as bases do poderio alemão posterior: constituição de um exército permanente e muito disciplinado e um sistema educacional universal onde o chicote era o seu maior instrumento. Castigos corporais eram regra na época, mas parece que nunca foram usados de maneira tão sistemática quanto lá: “Um mestre-escola contava que, em 51 anos de atividade, dera 124.000 chicotadas, 136.715 palmadas com a mão, 911.000 golpes comum pedaço de pau e 1.115.800 bofetões” (Will Durant, História da Civilização vol IX, p. 371). Se podemos ou não acreditar nesses números, não há como asseverar. A prova da tortura, entretanto, está na preocupação com números. Quem leu os relatos de Primo Levi sobre Auchwitz conhece esses rituais de desumanização. Aquelas bofetadas e chicotadas haveriam de voltar…sobre toda a humanidade.

Também aqui H. Arendt tem algo muito importante a dizer. Alguns de seus conceitos são essenciais para nortear qualquer processo educativo e, até mesmo terapêutico:

1-PLURALIDADE intrínseca ao ser humano (até mesmo o individual, pois somos seres divididos) e seu papel na origem da POLÍTICA (condição para vida na polis).

2-DIVERSIDADE: “Quantos mais povos houver no mundo que tenham, entre si, essa relação, mais mundo se formará entre eles e mais rico será o mundo. Quantos mais pontos de vista houver em um povo, a partir dos quais possa ser avistado o mesmo mundo…mais aberta será, para o mundo, essa nação (Idem);

3-ESPONTANEIDADE: a nova chance que a humanidade se atribui, sempre renovada nas novas gerações, obrigando educadores, psicólogos e pedagogos a estar sempre atentos aos riscos de padronizações e meros “ajustes” a um modelo qualquer.

Mas a pensadora, em sua luta contra a psicologia (uma resistência?), separou coisas que não se podem separar. É o que discutiremos no seguimento.

¹Essa “desertificação” implicaria o isolamento entre as pessoas e a perda de um certo âmbito político nas sociedades, onde deveriam ser decididos os seus destinos. As meras eleições periódicas não garantem esse papel para cada um de nós. Tornaram-se rituais mais ou menos vazios.

2-É um erro associar essa maior ou menor liberdade a tendências ou partidos de esquerda ou direta. De qualquer maneira, quando alguém se diz um CONSERVADOR, com muita frequência, está lutando pela preservação de modelos que impliquem a manutenção do SEU PRÓPRIO PODER. É especialmente no seio da famílias que esse conservadorismo produz seus maiores dramas.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ