Temas e Controvérsias

OS DADOS E OS “CONTRA-DADOS” NOS ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS

Discutindo o artigo "Superem o Preconceito" (OGl, 5/01): N. Goldenstein e F. Ramos

Um dos maiores problemas relacionados aos estudos epidemiológicos são as conclusões precipitadas por eles induzidas. Além disso, os números costumam conferir credibilidade e “status” de ciência às afirmações, especialmente nas pessoas não preparadas para a crítica desses mesmos dados. Refletindo detidamente sobre o bom texto dos dois eminentes colegas, chegamos àquele conceito que vamos tentar enunciar. Nesse uso da palavra “contra“, não se deve buscar um sentido de oposição. É de inspiração na DIALÉTICA—pois faz da procura pelos contrários seu maior instrumento— e se refere àquele complemento obrigatório que acompanha alguns conceitos, como em: contra-cheque, contra-dança, contra-canto, contra-ponto, contra-balanço, contra-transferência (o uso não convencional do hífen é intencional), além de outros.

O artigo visava alertar para a necessidade da identificação precoce de transtornos mentais: “…o tempo decorrido entre o surgimento das primeiras manifestações psicóticas e o primeiro contato com a rede de saúde ultrapassa um ano…o tempo entre as alterações mentais iniciais (ainda não psicóticas) e os primeiros cuidados, costuma ser ainda maior, ultrapassando 4 anos”. Antes de tudo, dadas as enormes diferenças entre países e regiões, haveria que identificar a origem dos dados. Há também, certamente, um problema para bem caracterizar “primeiras manifestações psicóticas”, uma vez que essa avaliação é, com toda certeza, retrospectiva, ou seja: a partir do quadro plenamente desenvolvido, o que influencia o julgamento.

O problema existe e o poder público precisa mesmo criar instrumentos para disponibilizar mecanismos de intervenção precoce. Como, entretanto, nenhum ato médico (ou de outras profissões) é completamente destituído de riscos, há que caminhar com cuidado, sob o risco de elevar os PRECONCEITOS em vez de os atacar. Por isso, e na primeira fase de intervenção, em vez de transtornos, preferimos usar uma expressão mais genérica: “sofrimento psíquico grave, com o qual a pessoa não está conseguindo lidar de maneira satisfatória, pelo menos momentaneamente“. Aos meus colegas psiquiatras, dizemos que, com isso, não estamos desconhecendo a existência dos Transt. Mentais propriamente ditos que podem se seguir. Esse cuidado com a linguagem, porém, tende a gerar serviços mais abrangentes aos quais as pessoas acorreriam com mais facilidade. Ou será que devemos deixar a intervenção, nessa fase, somente entregue às igrejas, centros espíritas e outros?

Vamos aos dados e à discussão do que propomos chamar “contra-dados”: “…cerca de 2/3 das pessoas que atravessam esses períodos de adoecimento pré-psicótico sofrem de manifestações depressivas avaliadas entre moderadas e graves. Dentre essas, quase 90% apresentam plano suicida, ou cometem tentativas graves…10% alcançam êxito letal …sem falar nos indiv. que adotam condutas claramente autodestrutivas…Quase todos encontrando no isolamento social, parcial ou total, sua forma de auto-defesa”. A expressão “adoecimento prépsicótico” implica que o universo a que os autores se referem é o dos cerca de 1% da pop que desenvolvem, posteriormente, ESQUIZOFRENIA. Por isso mesmo, e a partir da tomada do transtorno como referência: “…investir em cuidados na saúde das crianças, adolescentes e adultos jovens…para que as pessoas possam receber os cuidados necessários em tempo hábil…”, poderá elevar ainda mais a tendência à medicalização da vida.

Para efeito de comparação, havia uma prática, consagrada entre os neurologistas por décadas, de manter em uso de anti-convulsivantes todas as crianças que tivessem sofrido uma crise convulsiva associada a estados febris. Baseavam-se apenas na constatação de que essas pessoas teriam limiar convulsivante mais baixo e maior risco de novas crises. Considerando, porém, que os anticonvulsivantes interferem no desenvolvimento e que o risco de novas convulsões é mínimo nesses casos, a prática trouxe muito mais prejuízos do que benefícios sendo desastrosa para muitos. É essa inversão da avaliação dos dados, procurando pelo seu reverso, que nos fornece o que chamamos de “contra-dados”.

Mesmo que estivéssemos falando nos mais de 20% da pop em geral que sofrem, em algum momento das suas vidas, um transtorno mental e/ou de personalidade, as intervenções muito precoces também precisam ser muito cuidadosas. Os “contra-dados”, nesse caso, viriam do percentual de pessoas que apresentaram grande sofrimento psíquico e “distúrbios de comportamento” na infância e adolescência, sem que evoluíssem para transtorno mental propriamente dito. Para esses, as intervenções (se ocorressem) poderiam até ter sido maléficas, uma vez que algumas crises—e períodos de grandes dramas morais—podem ser muito importantes na evolução de uma pessoa. São esses os “contra-dados”, pelos quais ninguém se interessa, uma vez que os pesquisadores estão interessados principalmente (ou exclusivamente) na valorização dos transtornos que pesquisam.

Há, entretanto, um cuidado mais sutil, cuja teorização apresentamos em outro título deste blog (ver “Síndrome de Desvio Qualitativo da Norma”). Seria através dos seres ditos “desviantes”, em uma época, que os costumes das sociedade se desenvolveriam. Quantos comportamentos foram considerados imorais e reprimidos nos anos 1960/70, até se tornarem regra nas décadas seguintes? Qualquer padronização de comportamento implicaria uma resistência à evolução dos costumes em geral. Essa é mais uma razão para restringir a intervenção mais propriamente médica às situações extremas.

Partindo do princípio da medicina primum non nocere, bem melhor seria oferecer cuidados que, sem qualquer dúvida, são benéficos para todos os cidadãos: estimular a expressão individual e coletiva; maior ligação e inserção na cultura de sua região; aceitação da diversidade, estimulando a comunicação entre as pessoas e respeitando suas peculiaridades; evitar qualquer julgamento moralista das condutas humanas e qualquer tentativa de sua “padronização”; ajudar a que as pessoas descubram alguns talentos, que porventura tenham, e ajudar no seu desenvolvimento, além de outras. Nesse processo, os casos mais graves, necessitando de intervenção mais específica, seriam facilmente identificados.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ