Temas e Controvérsias

OS INSTINTOS: CONTRAPONDO NIETZSCHE A FREUD-I

Em uma das suas últimas entrevistas, S. Freud afirmou ter sido F. Nietzsche o primeiro psicanalista da história. Foi um exagero! Psicanalista mesmo, que criou um método, ninguém pode duvidar ter sido, ele mesmo, Freud, o primeiro. “Errou na mão”, talvez tentando pagar um tributo, tardiamente, a um filósofo que, direta ou indiretamente, abriu todos os caminhos para a investigação psicológica. Os filósofos não brotam da noite para o dia como os cogumelos (K.Marx). Precisam de um “caldo de cultura” de lenta maturação. Foi nele que Freud—assim como todos os que o seguiram, mesmo que não o soubessem—se “embebeu” e produziu sua obra.
Muitos acusam o filósofo por sua “prepotência e arrogância”, em relação aos seus contemporâneos, mas nunca um pensador foi tão humilde em relação ao porvir: chamou o seu “Aurora” de “A Relha do Arado” e deu, como subtítulo ao “Além do Bem e do Mal“, “Prelúdio a Uma Filosofia do Futuro“. Sabia que estava abrindo caminhos, como que preparando a terra para outros, e sonhava com o surgimento de uma geração de “espíritos livres”. Só para comparar, Hegel dizia que toda a filosofia, até então, existira em função apenas do seu último apogeu, o alemão, e da sua própria filosofia (“apogeu do apogeu”) , é claro.

Há mesmo muito de continuidade entre as obras do pensador e a teoria desenvolvida por Freud. Um elemento fundamental, entretanto, nessas obras, quase os coloca em campos opostos: a atitude em relação àquilo que denominamos INSTINTO. Enquanto Nietzsche sempre lutou por uma reaproximação, dos seres humanos, em relação às suas disposições mais profundas, Freud sempre as olhou com uma enorme desconfiança.
“Se o laço dos instintos, esse laço protetor, não fosse tão mais poderoso do que a consciência; se não desempenhasse, no conjunto, um papel de regulador, a humanidade sucumbiria fatalmente sob o peso de seus juízos absurdos…de suas frivolidades, sua credulidade, isto é, seu consciente” (Nietzsche: “A Gaia Ciência” ou “O Alegre Saber”, aforismo 11)
Quem duvidar dessas palavras, precisa saber, ou se lembrar, de que os médicos já contra-indicaram, por exemplo, a amamentação. Assim surgiram as amas de leite e as amas-secas. É possível imaginar uma violência maior, e mais simbólica, contra os instintos?

Antes de seguir adiante, há que resolver o problema das definições. Por alguma razão, parecemos ainda influenciados pela crença antediluviana e “antedarwiniana”¹ de que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. Na esfera do organismo, ninguém mais acredita que estamos em oposição ao reino animal. No que se refere ao funcionamento da mente, porém, em especial em relação aos comportamentos dos quais fomos educados a ter vergonha, ainda há muito a ser feito no sentido da demonstração de que somos, simplesmente, animais: históricos, culturais, estéticos, éticos…mas, animais.

Aplicando o silogismo: todos os mamíferos têm instintos; os seres humanos são mamíferos, logo…, não há como escapar da conclusão de que também somos dotados dos assim chamados INSTINTOS: todo comportamento inato (não apenas aprendido), essencial à preservação da espécie, selecionado no curso da evolução. Tendo em vista, que todo o esforço educacional tem sido dirigido ao refinamento da capacidade de disfarçar a expressão das nossas disposições mais profundas—principalmente no que se refere à sexualidade e à agressividade—esse trabalho de “resgate de nós mesmos” não há de ser muito fácil. Essa parece ter sido, pelo menos no início, a principal tarefa da psicanálise.

O primeiro problema, com a abordagem que Freud fez do tema, surge exatamente do conceito de INSTINTO e da terminologia que usou. Tentaremos não nos deixar envolver na confusão paralisante, decorrente da discussão quanto a ter ele se valido de “Instinct” (mais específico) ou “Triebe” (pulsão). Essa se assemelha mais a uma “cortina de fumaça” para confundir um tema que ele nunca abordou de maneira satisfatória, embora tenha a ele retornado inúmeras vêzes. O que interessa aqui, é que o pensador que demonstrou a importância: 1-das necessidades inconscientes nas ações humanas; 2-do papel primordial da sexualidade; 3-do estudo dos povos primitivos, e que afirmou provir toda a energia do “aparelho psíquico” da sua porção mais primitiva, estava quase obrigado a investigar o papel dos instintos nos seres humanos, a partir de paralelos com os demais mamíferos. Quando o fez, porém, confundiu tudo, ao inventar um c erto “instinto do eu” que deveria ser contraposto ao instinto gregário:

A psicanálise se opôe a essa tese (da existência de um instinto gregário). Se o instinto social é também inato, pode ser referido a cargas de objeto originariamente libidinosas e se desenvolver no indivíduo como produto da reação a atitudes hostis de rivalidade (“Esquema da Psicanálise: A Libido”).

Muito antes da psicanálise, Freud dissera algo tão diferente e tão mais belo e profundo!

O organismo humano é, em princípio, incapaz de levar a cabo esta ação específica (aliviar tensões pelo alimento), realizando-a por meio de assistência alheia (da mãe na maioria das vêzes)...Esta via de descarga adquire, assim, uma importantíssima função secundária, a da compreensão(comunicação com o próximo), e essa incapacidade de se defender converte-se na fonte primordial de todas as motivações morais” (“Uma Psicologia para Neurólogos”).

Em apenas uma sentença, Freud deu um passo adiante em relação a tudo o que dissera Nietzsche sobre o tema, quando demonstrou o processo que leva até a MORAL—esse compromisso primordial com a espécie—no ser humano. A necessidade do outro é tão imperiosa, que, quando ele não existe, precisamos “inventá-lo”. Outro equívoco de freud, foi a associação do instinto gregário com o “rebanho” e a massa amorfa comandada por caudilhos, como se as individualidades estivessem sempre em oposição ao seu próprio povo e cultura (“Psicologia das Massas”). Além disso, falou do instinto sexual como não tivesse qualquer relação com a reprodução. Por fim, diríamos que se o instinto individual de sobrevivência fosse o mais forte, o suicídio seria um contra-senso. Como bem o demonstrou Durkheim, é a ruptura de laços sociais, e/ou a sua não feitura, o fa tor mais importante na elevação do risco de autoextermínio.

Infelizmente, Freud não sustentou as idéias que tão bem expressou no final do século XIX, e passou a associar o ID ao instinto de morte e destruição (“Esquema de Psicanálise”), como se algo que é inevitável: a morte, necessitasse de algum INSTINTO! Com isso, fez coro com aqueles que sempre tentaram provocar vergonha nos seres humanos em relação a si mesmos. É o que discutiremos no próximo texto.

¹Quando começaram a surgir os primeiros fósseis dos grandes répteis, os ingleses, do alto de sua sabedoria, disseram tratarem-se dos animais que não tinham conseguido entrar a tempo na Arca de Noé.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ