No final do artigo anterior, julgamos ter chegado àquele que consideramos o maior desafio de nossa prática profissional: como promover a auto-confiança de cada ser humano e também sua fé na própria humanidade? Por que não aplicar essa palavra à relação entre seres humanos? Quando as igrejas dela se “apossaram”, foi com um objetivo exatamente contrário: o de projetar essa fé para fora do mundo e da relação com nossos semelhantes, “esvaziando” um pouco a cada um de nós. Se a psiquiatria e a psicologia não servirem para elevar a independência e a confiança dos seres humanos uns nos outros, elas não hão de servir para mais nada. Foi promovendo um sentimento de vergonha da própria condição humana, que alguns poucos estabeleceram seu poder sobre os demais. Nesse processo, o maior alvo foi a sensualidade:
“…cada vez mais difamada e estigmatizada…Naquela época, a psicologia servia para tornar suspeito tudo o que é humano…para difamá-lo, açoitá-lo…Associar, algo natural (por isso mesmo imperioso), à idéia de mau, de pecaminoso (como se costuma fazer, até hoje, com o erótico), incomoda, obscurece a imaginação, dá um olhar medroso, faz o homem brigar consigo mesmo, torna-o inseguro e desconfiado…Os homens se tornam piores quando qualificam de mau o que é inevitavelmente natural…”(F. Nietzsche, “Humano….”, Aforisma 141)
Fechando o ciclo: a partir dessa difamação da natureza (por definição, inevitável), somente alguma redenção poderia “nos salvar”. Estava preparado o caminho para o poder dos sacerdotes: através da vergonha e desconfiança de cada um de nós, sobre nós mesmos e sobre os nossos semelhantes. Foi a esse conjunto de idéias que Freud terminou por se submeter e associar, quando defendeu um papel vigilante e controlador do EGO em relação ao ID, sempre visto como fonte de perigos para a civilização. Não se dava conta de que, se havia algo de perigoso na expressão dos instintos, assim fora tornado pela violência da civilização contra eles.
“…A interpretação mais próxima é a de que o masoquista quer ser tratado como um menino pequeno, inerme e dependente, porém, especialmente, como um MENINO MAU…(depois de uma ampla elaboração das fantasias masoquistas)…o sujeito se transfere a uma situação característica da femininidade: ser castrado, sofrer o coito ou parir” (Freud: “Vida Sexual- Masoquismo”).
Tentando não aplicar juízos “politicamente corretos”, há nessas palavras uma total desconsideração para com os direitos das pessoas mais frágeis da sociedade: as crianças e as mulheres. O que é um “menino mau”? Ao não discutir o papel perverso da civilização que produziu os “meninos maus” (e a pior barbárie da história), Freud demonstrou com quem estava sua identificação preferencial. No outro extremo, quantos foram os ataques de Nietzsche às perversões do modelo educacional alemão, cujas escolas, forças armadas e igrejas comparou às “menageries” (locais onde se adestravam animais para o circo). Tudo isso, em nome do “aperfeiçoamento” do homem¹!
Segundo muitos dos que destratam o filósofo, ele seria um defensor da barbárie e dos instintos mais violentos. Nietzsche, efetivamente, deixou margem para esse julgamento, especialmente no seu “Anticristo”, obra que transpira já um ressentimento que faz pensar na transposição do umbral do loucura (mas sem perder grandeza e generosidade). Em suas últimas semanas, em Turim, o povo chamou-o de “Il Santo“, tal a sua figura e gentileza no trato para com todos. O que dizer, então, da assinatura em sua última carta: “O Crucificado”?! Não houve uma solidão maior, nem personagem mais rico e contraditório entre os mortais! E se há um caminho para compatibilizar a civilização com as nossas disposições mais profundas, é o que ele apontou em “O Caminhante e Sua Sombra” (af. 53: “As Paixões Dominadas”):
“O homem que dominou suas paixãos tomou posse do território mais fecundo, como um colono que adquiriu um bosque e pântanos. A tarefa mais urgente, e imediata, é SEMEAR, no terreno das paixões vencidas, a semente de boas obras espirituais. Dominar não é senão um MEIO e não um fim em si, caso contrário, crescerá toda espécie de erva daninha e cizânias no terreno fecundo. Logo, tudo (o que se queria evitar) começará a prosperar com mais impetuosidade do que antes”.
Foi exatamente o que aconteceu com a “Grande Civilização Alemã”, forjada no fogo da violência prussiana². É ainda, do filósofo, o conceito de sublimação.
Até pelo raciocínio “energético/econômico”, tão caro a Freud, ele deveria se dar conta de que, qualquer luta frontal com nossas disposições mais profundas implica, necessariamente, um esvaziamento de nós mesmos:
“Um indivíduo é …um ID psíquico, desconhecido e inconsciente, em cuja superfície, aparece um EU…(como um) cavaleiro que rege e refreia sua cavalgadura..com a diferença de que o cavaleiro usa suas próprias energias, enquanto o EU, energias emprestadas (do próprio ID). (Freud, “O EU e o ID”).
Basta um mínimo de lógica, para concluir: qualquer confronto de um sistema/aparelho com sua própria fonte de energia só pode resultar em um enfraquecimento desse mesmo sistema/aparelho. Deixando de lado esses “raciocínios energéticos” (colocando a psicologia “a reboque” da física e que discutiremos em outro texto), é nisso que se deve procurar a origem da decadência, seja de um indivíduo ou uma sociedade.
“A luz viva, a razão acima de tudo, a vida clara, prudente, desprovida dos instintos, em luta contra eles, é uma outra doença, uma nova doença—e não um retorno à virtude, à saúde, à felicidade…Ver-se FORÇADO a lutar contra os instintos, EIS A DECADÊNCIA! Enquanto a vida é ASCENDENTE, a felicidade identifica-se com o instinto (FN “O Crepúsculo dos Deuses”-Af.11).
Discutia o fenômeno Sócrates e sua apologia da Razão: sinal do esgotamento da cultura grega.
Quando um povo se encontra em decadência e degenerescência física, os vícios e o luxo (a necessidade de excitantes cada vez mais fortes…) são consequência dessa decadência e não sua causa…perdeu a segurança instintiva. Todo erro é sempre consequência de uma degenerescência dos intintos, de uma desagregação da vontade…Tudo o que é BOM é fruto do instinto³ (Idem, “Os 4 Grandes Erros”).
Talvez, por tudo isso, no final de sua vida, Freud tenha destilado um enorme fel sobre a civilização e sua possibilidade de trazer bem estar aos homens. Nietzsche, ao contrário, do fundo sua mais profunda dor e solidão, sempre respondeu à possibilidade de passar, mais uma vez, por todas as dores da vida: “DA CAPO!“.
¹Até hoje, os alemães utilizam uma estranha expressão (que dispensa tradução) para aquilo que se espera de um bom aluno, soldado, trabalhador ou religioso: “Kadaverdiszplin“.
²O que mais impressiona, nos relatos que fez Primo Levi, dos seus primeiros anos em “Auchwitz”, foi seu funcionamento parecido com um colégio interno, regido por pessoas totalmente perversas: apologia da disciplina, da ordem e de uma falsa higiene, apenas ritualística. Nas paredes, além disso, podiam-se ver dizeres, “versinhos” e desenhos “educativos e edificantes”: “Depois das latrinas e antes de comer/Lave suas mãos, é bom não esquecer”. Além disso, quando conversavam, logo na sua chegada, um alemão gritou com a violência habitual: “Vocês não estão em uma escola de rabinos!“. Não! Eles estavam em uma “escola alemã”, experimentando o extremo do processo que desembocou no “IIIReich”.
³Outra consequência do ataque aos instintos é a submissão dos mais jovens aos mais velhos: se não acreditamos na nossa inteligência instintiva, e na intuição decorrente dela, o que nos restaria seria seguir a “voz da experiência”. O problema é que, como disse um pensador, quando alguém diz que tem muita experiência, está apenas repetindo: “Eu repito os mesmos erros há muito tempo”. Antes de mais nada: não seguir exemplo de ninguém. Os caminhos que levaram uma pessoa ao sucesso, levarão outras ao calvário, e sem qualquer glória.