Temas e Controvérsias

OS SONHOS ANTES DE FREUD: DOSTOIÉVSKI E NIETZSCHE.

(Algumas perguntas e afirmações que abrem caminhos muito ricos)
Dostoiévski e nietzsche
Dostoiévski e Nietzsche

“…Lembramo-nos, antes de tudo, de que nossa razão não nos abandonou completamente durante o sonho. Recordamos que agimos, durante o sonho, de forma sagaz e até com lógica…Mas…como foi que conseguimos conciliar nossa razão com os notórios absurdos e impossibilidades através dos quais nossos sonhos surgiram? …Ao acordar e voltar plenamente à realidade, sentimos que restou algo sem explicação por trás de um sonho…Rimos ante seu absurdo, mas, simultaneamente, sentimos que, intercalado entre esses absurdos, permanece um pensamento oculto e que esse pensamento era real, pertencia, como coisa e como fato, à nossa vida do momento. E, além disso, algo de novo, profético, que não esperávamos, era-nos dito em nosso sonho…” (Dostoiévski: “O IDIOTA”, parte III-X)
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A “Interpretação dos Sonhos” é, certamente, o livro em que Freud mais se esforçou na fundamentação teórica a partir do estudo e referência a autores que o antecederam. É um sinal do quanto o tema estava em voga em sua época. Aquele foi o livro de sua afirmação pessoal e como cientista, servindo também para lançar as bases para a teoria que, segundo alguns, mais teria influenciado o pensamento mundial no século XX. Mas ali faltaram algumas referências fundamentais, especialmente aos autores assinalados. Em relação a NIETZSCHE, Otto Rank se encarregou de tentar superar a ausência, apresentando a longa citação (abaixo) retirada de “AURORA”. Já em relação a Dostoiévski, parece que “O IDIOTA” não fez parte da leitura dos psicanalistas. Se tivesse feito, veriam que o grande russo foi muito além de meramente assinalar a importância dos sonhos: estabeleceu bases muito consistentes para a hipótese da REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA que estaria a eles associada. É o que vamos discutir. Muitos exageros e até situações ridículas foram associadas à interpretação dos sonhos. É o que costuma acontecer com temas que interessam muito ao vulgo e são excessivamente explorados pela MÍDIA. Havia que criticá-los, mas simplesmente condenar as associações simbólicas em geral, como muito psicanalistas hoje o fazem, corresponde ao papel da ama desastrada do dito bem humorado: “Atirou o bebê fora, junto com a água da bacia”.
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AFINAL: EXISTEM OU NÃO AQUELAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS?
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A questão essencial, nesse caso, permanece sempre a mesma (aliás, na ciência em geral): existe ou não um simbolismo associado às expressões humanas não mediadas pela crítica e “ajustamentos” racionais? Se a resposta é SIM, então essa expressão subjacente precisa mesmo ser investigada, caso contrário, estaríamos agindo como “NÃO CIENTISTAS”. E isso passa, necessariamente, por…interpretações. Dostoiévski também as fez, e de forma absolutamente explícita até mesmo nos atos do dia a dia das pessoas: “…as causas das ações humanas são, de hábito, incomensuravelmente mais complexas e variadas do que as explicações que delas damos”. Vejam o que ele fez com um OURIÇO dado de presente: o príncipe Mishikin—chamado “idiota” por conta de sua incapacidade de mentir e de alimentar maus julgamentos sobre os demais—apaixona-se por uma moça muito rebelde e estouvada, que, por sua vez, também o ama, embora não o admita. Por razões típicas dos personagens do autor, Aglaia trata muito mal a seu amado chegando a expulsá-lo de sua casa. Assim que ele sai, porém e tendo o irmão da moça entrado em casa com um .em uma gaiola, ordena ela que seu irmão leve o pequeno animal de presente a Mishkin. Isso dispara uma profunda e bem humorada discussão sobre o simbolismo do ouriço; muito óbvio, aliás: ela mesma era um ouriço, capaz de “espetar” permanentemente aqueles a quem ama: “Kolia (o irmão)…logo começou a amolá-la perguntando o que o ouriço representava, a ponto dela fazer dele um presente”. Aglaia negou-o peremptoriamente, mas Kolia “estava convencido de haver naquilo alguma alegoria”. Já da parte do príncipe, o presente foi recebido com enorme prazer.

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E as peripécias de um ouriço continuaram abrangendo quase toda a família*: “A mãe, que já estava em aparente estado mórbido, teve sua apreensão levada ao extremo com a história do ouriço. Que significava esse ouriço? Que convenção estaria nisso subentendido? Que representaria ele? Qual seria a mensagem cifrada?”. Já o pai, deu uma resposta que antecipou em muito uma piada atribuída a Freud ao responder a uma pergunta quanto às interpretações em geral: “Por vezes, um charuto é somente….um charuto”. Disse o pai de Aglaia (Ivan Fiodorovitch): “…não há hieroglifo nenhum, nem mensagem cifrada qualquer: o ouriço é simplesmente um…ouriço e nada mais do que um ouriço…”. Deve ser nesse personagem que buscam inspiração aqueles “cientistas” que dizem serem os sonhos nada mais do que representações aleatórias, frutos da variação de secreções neuro humorais, sem interesse simbólico qualquer. Já para o príncipe (dito IDIOTA), que estava “…no mais negro dos desesperos, quando Kolia surgiu (com o ouriço) o céu logo se clareou. Foi como se Mishkin tivesse ressuscitado”
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E NIETZSCHE TOMOU A LANÇA E A ATIROU AINDA MAIS LONGE!
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Vamos às citações e comecemos por uma fusão única entre poesia e filosofia: “O Sonho e a Responsabilidade” (“AURORA” Af.128)- “Em tudo vocês querem ser responsáveis! Mas não pelos seus sonhos! Que miserável fraqueza; que falta de coragem consequente! Nada é MAIS seu do que seus sonhos! Nada é mais sua obra: conteúdo, forma, duração, ator espectador; nessas comédias vs próprios são tudo…! Disso concluo que a maioria dos homens deve ter consciências de sonhos abomináveis”.
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E AS BASES PARA A INVESTIGAÇÃO NO SÉC. XXI FORAM LANÇADAS NO XIX!
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Muitos se surpreenderão, mas as bases para investigação neurofisiológica dos sonhos: sua origem; relação com funcionamento do corpo; com a vida em vigília e possível função adaptativa foram lançadas em 1880. Saltaram o séc. XX e ficaram aguardando pelo séc. XXI. Afinal, em ciência, tudo começa por fazer as perguntas certas. Vamos a uma bela expressão de ESPÍRITO CIENTÍFICO; algo que deveria surpreender os cientistas modernos por vir de um “filósofo moderno”. A rigor, Nietzsche vai bem além da simples interpretação dos sonhos no estado de vigília. Tenta (e consegue) iniciar a investigação do PROCESSO pelo qual o próprio sonho se formaria a partir de estímulos que tomariam formas diferentes, dependendo das necessidades momentâneas do indivíduo: “Viver e Inventar” (Af. 119)- (depois de dizer que ninguém se satisfaz com “comida sonhada”) “…mas a maioria dos impulsos, sobretudo os assim chamados ‘morais’, fazem justamente isso—se for permitida a conjectura de que nossos sonhos têm precisamente o valor…de compensar a casual ausência de ‘alimentação’ (satisfação de prazeres e necessidades)…(segue citando inúmeros temas típicos de sonhos)…são interpretações de estímulos nervosos…, Interpretações muito livres e arbitrárias de movimentos do sangue e das vísceras; da pressão dos braços e da coberta; dos sons do sino da torres, dos cataventos, etc…devo acrescentar: que nossos impulsos nas horas despertas, também não fazem senão interpretar estímulos nervosos; que não há diferença essencial entre sonhos e vigília; que, mesmo comparando estágios de cultura muito diferentes, a liberdade de interpretação quando despertos não difere muito…; que também nossos juízos e valorações morais são apenas imagens e fantasias a partir de um processo fisiológico desconhecido, uma espécie de linguagem adquirida para designar certos estímulos nervosos..”.
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*É verdade que a mãe considerou haver ali um código previamente estabelecido, mas toda a discussão se dá em torno do SIMBOLISMO do ouriço. O senso de humor de Dostoiévski é impressionante. Vê-lo somente como sombrio e pesado é não conhecer a riqueza da sua personalidade. Como Zaratustra, ele desceu ao mais fundo dos abismos…e lá dançou.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ