Temas e Controvérsias

PAULO FREIRE: MISSIVISTA E MISSIONÁRIO-III

(Que a humanidade se livre da maneira PIRAMIDAL de raciocinar)

P freire coloridoNOTA: Aprecio muito a leitura de cartas dos intelectuais e artistas que admiro. Nunca as verdades de cada um são expressadas de maneira tão clara! Além disso, elas se revelam documentos insubstituíveis na avaliação de uma época através da pena daqueles que a viveram intensamente. Vejam as cartas trocadas por M. Bandeira e M. de Andrade; de Nietzsche para vários destinatários; entre Marx e Engels; entre Leibniz e Clark; de Mozart a vários destinatários e assim por diante. A última boa surpresa que tive nesse campo foram as “CARTAS À GUINÉ-BISSAU” (Paz e Terra 1977) de P. Freire…E dizer que o comprei por 1 real em um sebo…! Nas minhas leituras anteriores do autor, esbarrava em problemas de estilo e retórica, como na “PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”*, além de erros gráficos sérios (descuido inaceitável quando se está em uma luta ideológica cerrada): “levar o povo à “fanatismos destrutivos” e outros. Quando escrevemos “à posteridade”—um interlocutor mudo que sequer nasceu—corremos tantos riscos! E tenho a impressão de que P. Freire sofreu desse problema, até porque foi muito insuflado no processo por admiradores. Já quando escreveu para um outro povo, que vivia em situação revolucionária, como ele foi claro, CUIDADOSO e RESPEITOSO! É principalmente sobre essas cartas que falaremos aqui.
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Paulo Freire parece não dever um conceito sequer aos grandes filósofos. Aliás, não sei muito sobre suas leituras prévias. Sua obra, é tão ligada à terra (no melhor dos sentidos) e às pessoas comuns que tudo ali pode ter tido uma origem e desenvolvimento quase que totalmente autóctones. Seu respeito à individualidade e à cultura dos povos é algo tão visceral que as bases da sua teorização parecem ter se desenvolvido junto com ele mesmo. Por isso, e por maior que possa ser a elegância que outros pensadores aplicaram, tenho a impressão de que ninguém foi tão longe quanto ele ou sequer irá, nesse tema pelo menos. Por falar em elegância, vejam o trecho da introdução ao livro citado: “O que se impõe, de fato, não é a transmissão ao povo de um conhecimento previamente elaborado, cujo processo implicasse o desconhecimento daquilo que o povo já sabe…mas a ele devolver em forma organizada aquilo que ele nos oferece em forma desorganizada…conhecer, com a gente do povo e à sua maneira: como o povo conhece e os níveis de seu conhecimento…desafiá-lo, através da reflexão crítica sobre sua própria atividade prática…”. Guardadas as diferenças entre as situações, trata-se do mesmo respeito e prática defendida por G. W. LEIBNIZ (um pouco mais carregada de METAFÍSICA): “…nada nos pode ser ensinado cuja ideia não tenhamos já no espírito…Platão levou um rapazinho às mais difíceis verdades da geometria…apenas fazendo perguntas por ordem e propósito…” (Discurso da Metafísica)
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DE PIRAMIDAL BASTA A DECADÊNCIA EGÍPCIA
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Se há algo que simboliza e marca toda estrutura engessada de poder é a estrutura/forma PIRAMIDAL. E como as sociedades precisam se livrar desse quase arquétipo de raciocínio, visando OBEDIÊNCIA e MANDO com vários graus de submissão! Sua máxima expressão parece-me ter sido alcançada no “FÜHER”. Sua derivação envolvendo povos, raças, classes, etc. parece-me mais perigosa ainda, pois implica a crença de que TODOS os povos estariam em estágios diferentes, sempre visando alcançar o “superior”. E foi exatamente isso que P. Freire atacou com muita clareza na própria estrutura de ensino, onde essas crenças deformadas se consolidam: “…o fundamental é que o novo sistema educacional…não seja algo piramidal…cuja vocação ou razão de ser seja selecionar os educandos que seriam encaminhados à etapa posterior”** (03/02/1976). Sua marca, aliás, seria a da EXCLUSÃO. “Dessa forma a educação primária…mesmo que mantenha relações com as demais, não há de ser concebida como uma estrada (ou escada) a conduzir a um ponto superior”. Para que se tenha uma ideia de como é diferente esse olhar em relação ao que ainda hoje é a prática dita eurocêntrica, vejam as sentenças do justamente admirado (não por essas sentenças, mas por outras já assinaladas neste mesmo blog) J. Piaget: “O desenvolvimento psíquico…orienta-se essencialmente para o equilíbrio…uma forma de equilíbrio final representado pelo espírito adulto...O desenvolvimento, portanto é uma equilibração progressiva…uma passagem contínua de um estado menor de equilíbrio para um estado superior……finalmente, também as relações sociais obedecem às mesmas leis de estabilização gradual (Seis estudos de PSICOLOGIA, 1967).
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Quanta decadência! Que tenha sido escrito quando o mundo estava à beira de uma guerra nuclear e pouco depois da hecatombe nazista…é de uma ALIENAÇÃO sem par. Freud e Piaget, do ponto de vista da compreensão dos fenômenos sociais, aproximam-se bastante em seu fracasso. A diferença, a favor de Freud, foi que sua decepção, em relação a esse “caminho linear” em direção à harmonia, deu-se quando da eclosão da Primeira Grande Guerra. Ele tinha uma perspectiva trágica da vida. Só não descobriu o “otimismo trágico” (Nietzsche sobre a tragédia grega)***. Até então, Freud também acreditava que a civilização européia era um exemplo para a humanidade e que todos estavam apenas em diferentes estágios do mesmo tipo de EVOLUÇÃO. Nada mais do que um “narcisismo cultural”. Depois, em função da decepção e incapacidade de vislumbrar outros caminhos em outras culturas, caiu em uma descrença generalizada. Quando da descoberta do Brasil (muito mais do que da América), a Europa também sofreu um sério abalo em suas convicções quanto aos seus próprios caminhos. Afinal, nossos índios aplicavam valores muito mais elevados e viviam muito melhor do que os “cristãos” recém saídos dos horrores medievais (ver “OS CANIBAIS” M. de Montaigne, depois de entrevistar alguns índios levados à França por volta de 1570). Mais uma vez, a humanidade há de aprender muito conosco.
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*Nessa discussão, tenho a impressão de que enfatizar a questão de CLASSES
é contraproducente. Afinal, as crianças da “classe opressora” são as primeiras a sofrer uma opressão (ver texto anterior e citação de Montaigne)
**Mas ninguém é perfeito e esse modelo é tão arraigado que até P. Freire nele deu uma “escorregada”: “Não ensinamos apenas conteúdos. Através do seu ensino, ensinamos também a pensar criticamente” (Política e Educação, 1992). Inspirado no próprio, melhor seria dizer: EXERCITAMOS…afinal, nós mesmos estamos nessa educação permanente.
***Desse ponto de vista, a melhor formulação é também de LEIBNIZ de cujo otimismo e crença na HARMONIA pré-estabelecida tanto debocharam seus contemporâneos, além dos ILUMINISTAS. Afinal, eram tantos os horrores da época! “…Como na música, quando um grande compositor leva uma dissonância ao extremo e, com isso, eleva o bem estar quando da sua resolução”. Essa seria a “harmonia divina pré estabelecida”.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ