Temas e Controvérsias

PERCEPÇÃO OU APERCEPÇÃO DELIRANTE- II

(De como os Transtornos são importantes para o estudo da função "NORMAL")

NOTA: já há algum tempo venho tentando reafirmar a importância do estudo da PSICOPATOLOGIA para o próprio entendimento do funcionamento dito “normal” da mente humana. Em princípio (e só para efeito de raciocínio), se eles não ocorressem o estímulo ao estudo do “normal” seria bem menor. Além disso, e como as manifestações dos transtornos não são aleatórias*, abrem janelas enormes para o entendimento do nosso próprio funcionamento.

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KLAUS CONRAD (1901-196)

Os transtornos ocorridos em uma função qualquer costumam oferecer enormes subsídios ao estudo dessa mesma função. No caso da apercepção, a investigação neuropsicológica das agnosias fez muito mais, pois serviu até mesmo para a sua validação. Estão bem caracterizadas as agnosias associativas nas quais é observada incapacidade de assinalar o significado de situações, objetos, animais ou prédios, apesar da preservação da capacidade de descrever e copiar suas imagens (Ghadiali, 2004). Foram descritas também as agnosias aperceptivas (ou visuo-espaciais) nas quais, além da impossibilidade da atribuição de significados ao observado, há uma incapacidade de reproduzir imagens. Sem desmerecer o reforço e confirmação advindos das pesquisas neuropsicológicas, diríamos que o próprio fenômeno (apercepção delirante) seria suficiente para essa demonstração, uma vez que implica uma separação muito clara entre as percepções e as apercepções, especialmente quando essas últimas não guardam relação de significado corrente com as primeiras. Estamos convencidos, além disso, de que todo o conhecimento oriundo da fenomenologia deve ser submetido a uma crítica à luz das mais recentes descobertas da neuropsicologia.
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O FENÔMENO E SUA IMPORTÂNCIA SEMIOLÓGICA
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As duas questões que devemos responder em relação às até hoje denominadas percepções delirantes são: o fenômeno existe? E, em caso afirmativo, tem importância semiológica? Vejamos um exemplo (C. Goás, 1966): “Ao entrar hoje em minha casa, encontrei uma garrafa de vinho tinto espatifada em uma grande poça de vinho. Toda minha angústia e depressão dos últimos tempos foram esclarecidas naquele mesmo instanteAquilo que acabava de ver me revelou tudo. Vão me aniquilar. Vão acabar com a minha vida, rompendo-a, como fizeram com a garrafa, até me dessangrar”. As duas principais características mais especificamente relacionadas ao fenômeno (e que o distinguem da atividade delirante em geral) estão aqui muito bem aqui expostas: 1- significado sem relação lógica com a percepção; 2- revelação auto-referente imediata e sem qualquer encadeamento de idéias como condição para a certeza decorrente.

Das duas características, a primeira é aquela que mais costuma chamar a atenção, mas nela nos parece haver uma fragilidade. Basta um pouco mais de imaginação para que associemos simbolicamente o vinho ao sangue, como já foi sobejamente feito, para que o critério sofra um abalo. Um esforço nesse sentido foi levado a efeito por Klaus Conrad que não aceitou a ideia da existência de um abismo intransponível (gerado pelo próprio método fenomenológico) entre a atividade delirante e a possibilidade da sua compreensão. Por isso, criticou duramente os grandes psicopatólogos por haverem “..capitulado ante a incompreensibilidade da percepção delirante”Já o segundo critério: revelação imediata e sem qualquer encadeamento de idéias, haverá sempre de garantir a importância do conceito, uma vez que, por seu caráter impositivo e pela passividade com que é aceita, sugere uma desestruturação da personalidade e da capacidade de julgamento mais graves do que os delírios de natureza não esquizofrênica.

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A QUESTÃO DA “FUNÇÃO BIMEMBRE” NAS P. DELIRANTES

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O fenômeno impressionou muito aos psicopatólogos clássicos, levando-os à criação de um conceito de difícil aceitação, a clássica “Função Bimembre” ocorrendo nos dois sentidos:1- do objeto (sensação) à percepção (como no processo normal); 2- mas também a partir de um significado prévio (na mente do paciente) movendo-se ao encontro da senso-percepção. Tentando resumir: presença de um significado prévio—já quase formulado plenamente na mente de um paciente em estado de “humor delirante difuso”—à procura de um estímulo não específico ou cuja associação NÃO seria compartilhada. A expressão “BIMEMBRE”, entretanto, implica “movimento” nos dois sentidos e atribui ao OBJETO um poder que ele definitivamente não tem. Só os alemães mesmo para tentarem dar um papel de SUJEITO a um OBJETO. Por fim, o que resulta de tudo isso é a importância da certeza imediata (revelação) sem necessidade de recorrer a qualquer raciocínio para reforço, confirmação e verificação.

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Não é demais citar aqui a elegante e clara sentença de M. Chalub (1977) a respeito: “Na percepção delirante, a significação falsa está sempre adstrita ao ato perceptivo, é coetânea e simultânea a ele. Esta simultaneidade…não permite a elaboração necessária e a atividade mental requerida para a enunciação de juízos possíveis”. Com relação à importância semiológica da manifestação para o diagnóstico das esquizofrenias, estamos convencidos de que a sua aparente baixa freqüência se deve ao fato de sua caracterização depender de um conhecimento prévio e aplicação de boa semiologia e isso tem caído em desuso no mundo excessivamente apressado e “objetivo” de hoje.

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*A rigor, nada na natureza é aleatório, como bem o afirmou B. ESPINOSA no seu TRATADO POLÍTICO: “…Sequer as produções mentais dos alienados”.
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ