Temas e Controvérsias

RECOLHIMENTO COMPULSÓRIO DE DROGADOS

(Nem corpos sem vida são tratados assim!)

Quando vi o anúncio do debate promovido pela ESCOLA DA MAGISRATURA do RJ, confesso ter procurado demoradamente pelas aspas. Aquele título só podia ser uma ironia, partida de quem discorda da política que vem sendo adotada pela Prefeitura do RIO! Afinal, quando, no início de 2011, chamaram uma operação (em Ipanema) contra a pop. de rua de “acolhimento”, lembro de ter brincado, dizendo que, a continuar essa “flexibilização” das palavras, logo um estuprador, apanhado em flagrante, diria: “Eu só estava fazendo uma operação de acolhimento a uma pobre moça nesse lugar tão ermo!”. O título da operação deveria ser mesmo “RECOLHIMENTO”! Agora, eles assumiram totalmente a expressão. Rasgaram todos os véus! NO INÍCIO ERA O VERBO!

Como foi possível expressar tanta perda do referencial humano em apenas 3 palavras? O verbo RECOLHER não é aplicado nem para o TRASLADO ou REMOÇÃO de corpos sem vida. Depois de um acidente, por exemplo, quando há vários mortos, ninguém fala que os corpos foram recolhidos e levados para algum lugar! Os corpos das pessoas merecem mesmo muito respeito. Ninguém aceitaria ouvir que o corpo de algum parente foi RECOLHIDO. RECOLHIMENTO É USADO ESPECIFICAMENTE PARA ENTULHO E LIXO. Talvez até nossos colegas convidados para discutir devessem ter condicionado essa participação a uma alteração no título do debate. É algo a pensar. (Costumamos ser um pouco submissos demais à JUSTIÇA e ela tem desrespeitado certos limites do respeito aos técnicos da área).

O que terá acontecido com a imagem daquelas pessoas mostradas na TV usando drogas? Não mais as vemos como semelhantes? Que fenômeno foi esse que as transformou em uma espécie de “ENTULHO (ou lixo) social” a ser simplesmente removido? O que está se passando na mente dos aplicadores da lei, a ponto de perderem completamente a dimensão humana? Qual será o próximo passo? Uma versão moderna de Campos de Concentração? Quem há de falar por elas, se a Justiça as abandona dessa forma? O mais cruel em tudo isso, é que essas pessoas foram transformadas em farrapos humanos (por doença, abandono e indiferença social) no seio dessa mesma sociedade que, agora, a quer longe do seus olhos.

Toda eliminação sistemática de pessoas se iniciou por sua desclassificação como seres humanos. Os nazistas trataram doentes mentais, judeus, ciganos…como ratos e baratas. Os “HUTUS”, antes do massacre de Ruanda, chamavam os “TUTSIS” de baratas. Os jovens que usam “crack” estão sendo tratados, pela JUSTIÇA, como as baratas do lixo a ser removido. NO INÍCIO ERA O VERBO!

O que dizer, ainda, da sua total desclassificação como seres humanos, entranhada na expressão “DROGADOS”? Não são mais seres masculinos ou femininos; não dispôem mais de um nome; não foram batizados ou, quem sabe, deixaram de ser cristãos; não são mais: filhos de alguns outros seres humanos, portadores dos documentos de identidade de número……; com uma escolaridade, uma profissão e, principalmente, um passado. Talvez elas não tenham mesmo um futuro, mas um passado elas têm. É desse passado que nos envergonhamos. É ele que queremos enterrar ou atirar em um “lixão”. DE HOJE EM DIANTE SÃO SOMENTE DROGADOS E NADA MAIS, ATÉ QUE A MORTE OS LIBERTE. Que se contem as suas histórias, antes que se lhes tatue, nos ante-braços, um número dizendo: “DROGADO NÚMERO TAL”! NO INÍCIO ERA O VERBO!

O finais…….a História da Humanidade registra até onde podem ir os seres humanos. Nesse caso, porém, há um agravante. As atitudes desumanas, para com grupos de seres humanos, foram perpetradas longe dos olhos da Justiça. Aqui, o tal debate foi promovido por membros da Justiça do RJ—certamente os mesmos que tentaram desativar todos os pontos de ônibus da Praça XV, próximos ao Forum. Não gostam muito do povo em geral: do seu ruído, do seu cheiro e (quem sabe?) da sua alegria. São, certamente, dos que fazem apologia da “Cegueira da Justiça”. Atiraram fora a balança onde pesam as culpas sociais e, hoje, apenas brandem sua espada contra os mais fracos. E dizer que o princípio que re geu todas as formas de institucionalização da Justiça, de origem romana ou “bárbara”, foi o da garantia de direitos aos mais fracos! O que tem a ESCOLA DA MAGISTRATURA ENSINADO A SEUS ALUNOS?

NO INÍCIO ERA O VERBO! Para o bem e para o mal! Que seja montada uma força-tarefa para resgatar todas as histórias individuais daquelas pessoas: em letra e imagem. Que se lhes descubram suas antigas e pequenas histórias. Só assim ganharão um rosto. Não pode haver terapêutica sem individuação.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ