Temas e Controvérsias

“RESERVA MENTAL (OU COGNITIVA)”

Conceito Insuficiente...Denominação Deficiente!

CONCEITO: Quanto maior a escolaridade de uma pessoa (alguns tomam o cuidado de dizer “bagagem cultural”), maior sua capacidade de resistir à deterioração das funções cognitivas durante a evolução das diversas formas de demência

Em tempos de NEUROPLASTICIDADE, e quando a velha crença na irreversibilidade de muitas lesões neurológicas caiu por terra, valer-se de uma metáfora alusiva a tanques de combustível parece-nos um anacronismo. Pensar quantitativamente—haveria pessoas com mais reservas do que outras—diante da capacidade de regeneração dos neurônios e de outras áreas do cérebro de assumir funções perdidas pelas áreas originalmente responsáveis, revela uma não apreensão plena da magnitude dessas descobertas. Alguns poderiam dizer se tratar apenas de uma questão linguística, sem maiores consequências. Vamos tentar demonstrar o contrário: que o conceito não está bem formulado e que a denominação confunde e aprofunda preconceitos:

1-Quando é reforçado o papel da escolaridade (ou mesmo bagagem cultural), em detrimento do essencial que é: continuar, nos últimos tempos e na atualidade, realizando esforços para apreender novas habilidades ou conhecimentos em novas áreas, ficamos ancorados em eventos do passado e presos a títulos obtidos frequentemente de maneira meramente formal. Afirmamos, sem medo de errar: um analfabeto que, já em idade avançada, começar a aprender a tocar um instrumento musical, mantendo nisso um esforço concentrado—e ainda que fazendo pequenos progressos—estaria muito mais “protegido” do que um PhD que, nos útimos anos, não tivesse feito mais do que ruminar teorias e práticas estereotipadamente, sem qualquer esforço para abrir um caminho novo.

2-Outro risco da aplicação estereotipada do conceito é a confusão entre o que seja neuropatologia (deterioração neuronal e de conexões) com a identificação semiológica precoce de alguma deficiência. Vamos explicar: aceitemos que um matemático tenha uma maior capacidade de “mobilizar reservas” (só para respeitar o termo banalizado) diante de pequenas lesões cerebrais. Como, entretanto, sua atividade intelectual é muito diferenciada, haverá a tendência a que seus déficts, por menores que sejam, apareçam mais rapidamente do que em pessoas que desenvolvam atividades muito simples. É um princípio da natureza o de que quanto mais evoluída e diferenciada é uma função, mais frágil haverá também de ser: regenera-se o rabo de uma lagartixa, mas não as estruturas mais diferenciadas.

Haveria, então, pelo menos dois vetores a serem levados em consideração nessa avaliação: 1-a neuroplasticidade (maior, admitamos, no caso do matemático); 2-uma exigência também maior de preservação do seu cérebro para manutenção do mesmo e alto nível anterior de desempenho. Caso a deficiência—no desempenho do matemático—não tenha sido observada por um entrevistador, podemos suspeitar de que: A-o paciente conseguiu disfarçar sua deficiência, evitando situações de exposição (frequentemente também evitadas pelo médico, devido à sua própria ignorância); B-a semiologia foi mais cerimoniosa, certamente por uma identificação de classe; C-a investigação das deficiências, entre as pessoas mais simples foi mais incisiva, e as conclusões precipitadas, também por preconceito de classe*.

Reduzindo ao extremo (reductio ad extremis) talvez tudo fique mais claro: a perda da capacidade, por um matemático, para resolver equações complexas deve ocorrer mais cedo do que a de um analfabeto para somar 2+3. Afinal, valorizamos ou não—na avaliação das possíveis sequelas provocadas por um transtorno qualquer—a comparação de um paciente consigo mesmo e suas condições prévias? Faz mais sentido comparar, nessas situações, um paciente com outros ou com ele mesmo e seu nível prévio de adaptação (Eixo V) e desempenho?

3- O mesmo preconceito que levou à denominação aqui estudada, também “consagrou” a expressão: “inteligência em níveis compatíveis com a escolaridade”. Há nisso uma total inversão de valores. A frase sugere que a escolaridade “inventou” a inteligência e não o contrário; que a escolaridade “cria” a inteligência em alguém, e não o contrário. O preconceito está tão arraigado, que as pessoas sequer se dão conta de que a escolaridade, propriamente dita, tem pouco mais de 1000 anos. Já a inteligência….!

Praticamente todas as aplicações da tal “reserva cognitiva” que assisti tomaram a escolaridade como referência principal. Isso é uma deformação, pois seus aplicadores desconhecem que A CULTURA É, ANTES DE TUDO, ANALFABETA. Reconhecemos todos na Grécia o berço da cultura e civilização ocidentais, mas desconhecemos que, em seus tempos áureos, a imensa maioria da pop. grega era analfabeta; que sua cultura era eminentemente oral (filosofia em diálogos, teatro, música, poesia e artes pláticas); que seus poetas e/ou rapsodos compunham seus versos reunindo histórias contadas, decoravam-nos e os cantavam pelas cidades. A própria palavra alemã para poeta “DICHTER” (aquele que decora e dita) deriva da constatação desse analfabetismo. Quem poderia dizer que essas pessoas teriam menor atividade intelectual do que aqueles que sofrem em bancos de escola? Mesmo entre os nossos rapsodos—que criaram as histórias que são divulgadas em literatura de cordel, e os repentistas que versificam no momento, apesar de sua condição de iletrados—quem poderia dizer que sua “reserva cognitiva” é menor, apenas por não terem sentado nos bancos escolares?

Algo de muito curioso anda se passando com os estudiosos das demências em geral e da doença de Alzheimer em particular. Tudo ali tem apontado para a procura da concretude. Abandonaram completamente, por exemplo, o conceito de INTELIGÊNCIA, por ser “pouco específico”. Se tivessem atentado para a sua origem, talvez o respeitassem um pouco mais. Deriva de INTRO LEGERE: capacidade de “ler dentro das coisas e situações”; juntar dados que, para muitos, passam desapercebidos; antecipar acontecimentos. Substituíram-no por uma expressão pomposa, muito ao gosto da época: FUNÇÕES EXECUTIVAS. Quando, entretanto, apresentaram sua definição: “…conjunto de habilidades que…permitem ao indivíduo direcionar comportamentos e metas, avaliar eficiência e adequação desses comportamentos, abandonar estratégias ineficientes e…resolver problemas imediatos, de médio e longo prazo…” (Neuropsicologia: Teoria e Prática, 2008), repetiram, na essência, a definição de INTELIGÊNCIA. Que papel reconhecem para imaginação e intuição, por exemplo, considerando que sua função está longe de obedecer às “ordens da razão executiva”? Considerar a possibilidade da submissão de tudo ao papel EXECUTIVO seria decretar a esterilização de toda a criatividade, inclusive no campo científico.

*Essa não seria a primeira vez! Há trabalhos clássicos demonstrando que eram mais facilmente atribuídos diagnósticos de esquizofrenia (nos EUA) na seguinte sequência: mulheres negras, homens negros, mulheres brancas e, finalmente, homens brancos. O que pesava mais era exatamente o nível de identificação do entrevistador com o entrevistado.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ