Temas e Controvérsias

Ribot: Lei, Regra ou apenas mito?

Considerando que até mesmo as leis da física formuladas por Newton deixaram de ser tratadas como tal (a partir da demonstração da imprevisibilidade do movimento das partículas na mecânica quântica), falar em “leis associadas ao funcionamento mental” é algo totalmente extemporâneo. Por definição, a lei não pode ter exceções, ao contrário das regras. Limitemo-nos, então, a falar na Regra de Ribot. Mesmo essa, porém, não é aceita plenamente como tal.

Seu enunciado diz que a perda de registros, nas amnésias retrógradas, dar-se-ia: 1-do mais recente para o mais remoto; 2- do mais complexo para o mais simples e; 3- do menos importante, do ponto de vista dos afetos, para o mais importante. Qualquer pessoa que lida com idosos já percebeu a utilidade dessa regra: é muito comum que pacientes, em estado demencial mais avançado tratem, por exemplo, seus filhos como se fossem seus irmãos ou pais e esqueçam mais facilmente os acontecimentos do cotidiano do que os mais remotos.

Quando, porém, a referida regra foi submetida a investigações, surgiram muitas dúvidas quanto à sua aplicação e utilidade. Meeter et al (J.Exp.clin.neuropsychol., mach 2005), aplicando questionários a pacientes com demência moderada—para avaliação de amnésia retrógrada, ou seja, “dirigindo-se” para trás no tempo¹—-visando checagem de acontecimentos (a serem confirmados com seus parentes), só encontrou alguma correspondência temporal das perdas, para os períodos mais recentes, sugerindo uma “contaminação” pela amnésia anterógrada. Mais simples e engenhoso foi o estudo de um grupo norte-americano que comparou lembranças de acontecimentos das guerras da Coréia e Vietnam em pacs com demência leve a moderada. Caso existisse mesmo aquela lei, os pacientes se lembrariam melhor do acontecimentos da guerra da Coréia e isso não se verificou. Em verdade, os pacs tenderam a misturar os acontecimentos (não encontrei a referência lida há muito, mas é tão engenhosa que se justifica por si só).

Como resolver esse impasse entre a pesquisa e a clínica? Quanto interesse há na clara contraposição! A muito singela pergunta de uma aluna (psicol-UFF), se não resolveu o problema, pelo menos ajudou a lançar sobre ele um novo olhar: “E as outras características?” “Quais?” “Os afetos e o ‘do mais complexo….’?“. Quando enunciamos a Lei de Ribot, enumeramos três, digamos assim, “vetores” ou eixos, mas quando a aplicamos, só nos preocupamos com o tempo, talvez porque estejamos por demais viciados na mensuração e os afetos, por definição, não são mensuráveis. Nas situações familiares (confundir filhos com irmãos ou pais), por exemplo, a variável ligação afetiva está controlada, uma vez que as relações são semelhantes. Na lembrança dos acontecimentos das guerras citadas, os referentes ao Vietnam foram vivenciados de maneira muito mais dramática e demorada pelos americanos. Na Coréia eles ainda se consideravam os baluartes da liberdade e da democracia. No Vietnam houve um colapso dessa crença. A variável “afeto” pode ter contrabalançado as demais. Também nas lembranças referentes à própria vida, o interesse e os afetos fazem com que “retornemos” mais frequentemente aos fatos que sentimos como mais importantes para a preservação da nossa própria vida, registrando-os melhor. É tão óbvia (e já tão bem estabelecida) a relação memória/afetos, que chega surpreender que não se a tenha levado em consideração naquelas avaliações. É provável até que isso já tenha sido feito e estas palavras se devam apenas à minha própria ignorância.

¹-A classificação das hipomnesias se dá segundo vários critérios: extensão (período), origem, reversibilidade e outros. Na distinção, porém, entre as anterógradas e as retrógradas, as publicações mais lidas não referem qual o critério utilizado. Nós as classificamos assim “de acordo com o sentido de deslocamento no tempo”: se para a frente (a partir de um evento qualquer), anterógrada; se para trás, retrógrada. Para que esse não pareça apenas um exercício intelectual inútil, muitos autores não frisam (ou não se dão conta) que o sufixo implica progressão gradual e gradativa, ou seja, no tempo. Por tudo isso, a expressão, muito utilizada nos artigos recentes sobre demência: “amnésia retrógrada ou de longa duração” representa, no mínimo, uma perda de critérios: 1-não são sinônimas; 2- a expressão correta seria para longo período, até porque a perda do registro há de durar toda a vida do paciente.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ