Temas e Controvérsias

TROCANDO O PAPEL PASSIVO PELO ATIVO: INTERVINDO NO TEPT

Quando ouvimos o relato de estudos recentes, demonstrando que o FALAR nos acontecimentos determinantes do TEPT—por parte dos próprios pacientes—seria não somente inútil, como contraproducente, fomos tomados por uma verdadeira estupefação. Afinal, desde o surgimento da linguagem, os humanos têm usado esse poderoso instrumento para se “apoderar” da natureza, estabelecendo sobre ela algum controle (ou sua ilusão) a partir, principalmente, da capacidade de conceituar e denominar os fenômenos. Além disso, dentre todas as linguagens desenvolvidas, a

FALA se tornou o maior instrumento de aproximação e comunicação nessa espécie tão frágil em outros aspectos. Sem ela, talvez nem tivéssemos sobrevivido.
Mesmo na nossa vida muito comesinha, não aprendemos também a acreditar que, ao falarmos, demonstramos, no mínimo, confiança nos demais seres humanos e na sua capacidade de entender e compartilhar nossos dramas e dificuldades? Não somos um ser eminentemente social e não são, a linguagem e a fala, os maiores instrumentos de socialização? Não havia dúvidas: a ser verdade aquela afirmação, que apontava para a necessidade da restrição à fala e a comunicação dos pacientes, quase tudo teria que ser revisto, não apenas na psiquiatria/psicologia, mas também na filosofia, antropologia, sociologia, etc.

Assistindo a um documentário, ilustrado pela situação de um homem (sem sequelas graves) que, após um acidente de automóvel, passou a apresentar as manifestações típicas para o TEPT, tivemos a impressão de entender o porquê da abordagem do acontecimento dar a impressão de ser prejudicial: toda a atmosfera que cercava a intervenção junto ao paciente era a de se tratar de um “pobre coitado”, vítima de um mal muito grave, papel por ele também desempenhado. É mesmo muito difícil encontrar um ponto ótimo na intervenção nesses casos, mas estamos convencidos de que há uma enorme deformação entre os profissionais de saúde: a tese de que a função da medicina, e de outras formas de assistência, é ACABAR COM O SOFRIMENTO DAS PESSOAS. Levado ao extremo, essa forma de visão nos aproxima das igrejas com o seu “pare de sofrer!”. Esticando o raciocínio até o extremo do absurdo, chegaríamos à conclusão de que uma distribuição generalizada de opiácios seria a melhor conduta em situações de grave sofrimento.

Considerando, que há certas dores que são inevitáveis—uma vez que, sentindo amor e dando muito valor a algumas pessoas, estamos permanentemente diante da dessa possibilidade—falar em acabar com sofrimentos não ajuda a ninguém. A nossa questão há de ser muito mais, criar condições de apoio, de maneira a ajudar a ultrapassagem das “zonas de turbulência” que podem implicar até mesmo condições clínicas mais específicas. A intervenção nos T. do Pânico, nesse sentido, são paradigmáticas. Na vigência do pânico, abordagens mais propriamente psicoterápicas tendem a ser contraproducentes. Vencida a fase mais aguda, porém, não ajudar alguém a tentar restabelecer uma certa “rede de pensamentos” (através de algum dos tipos de psicoterapia) protetores contra o pânico, é de uma limitação inaceitável.

Depois de atacar a fala, linguagem e verbalização, muitos estão agora atacando a memória, pois dizem que os pacientes com TEPT sofrem de um “excesso de memória”. Levando, de novo, o raciocínio ao extremo e ao absurdo, poderíamos concluir que somente algum tipo de demência poderia livrar esses pacientes de seu mal. Há que perguntar, sempre, a serviço de que está nossa investigação. Considerando, ainda, que nenhum fato externo é suficiente para causar um TEPT mais propriamente dito (vejam-se os sobreviventes dos campos de concentração), talvez fosse interessante o desenvolvimento de uma espécie de equação composta de termos ligados aos fatos desencadeantes e outros ligados à história da pessoa, traços de personalidade e assim por diante. A tendência observada, hoje em dia, é a da ampliação desmesurada da valorização de acontecimentos “causais”.

Reduzindo a situação aos seus primórdios, e recorrendo mais uma vez a Freud, diríamos que o protótipo de todos os traumas é o afastamento da mãe, uma vez que, como o bebê não tem qualquer condição de julgar as situações da vida, toma as atitudes da mãe como sua referência principal: “se minha mãe está tranquila, é sinal de que posso estar tranquilo; se não…”. Além disso, como ainda não tem qualquer noção do que seja o tempo, qualquer afastamento é, a princípio pelo menos, sentido como um simples e definitivo desaparecimento catastrófico. Com o tempo, e diversas experiências, a maior parte das crianças passa a ter a noção de afastamento e retorno. O que era motivo para quase um desespero, torna-se motivo de orgulho e amor próprio. Como agimos nessas situações?

Ajudamos nas “ultrapassagens” mais dolorosas; elogiamos as conquistas; evitamos saltos e exigências exageradas; tentamos “calibrar” essas exigências às capacidades demonstradas momentanea e individualmente pela criança; fazemos certos recuos quando a criança demonstra não estar suportando uma situação e assim por diante. Qual o princípio que norteia essas atitudes? Desenvolver o gosto pela autonomia e independência. Para isso, e voltando a Nietzsche/Freud: estimulando a troca da posição passiva pela ativa. No que se refere aos fatos e recordações associados ao TEPT, a melhor descrição para esse processo, encontramos em “O Inverno da nossa Desesperança” (J. Steinbeck, cap 6), quando um antigo combatente orienta um jovem que começara a sentir os efeitos das recordações do campo de batalha invadindo sua mente durante noite e dia: “O que há de errado, é que o sujeito tenta tirar essas idéias da cabeça. Isso não dá resultado. O que temos de fazer é, de certo modo, acolher de bom grado as lembranças…Começa-se desde o princípio, relembrando tudo, do começo ao fim. Cada vez que a ‘coisa’ surgir, relembra-se de tudo, do princípio ao fim. Logo, a ‘coisa’ se cansa de aparecer e certos pormenores desaparecem, até que…tudo se dissipa”. Talvez essa seja a maneira que transformar “a coisa” em algo nosso.

Sabemos que há casos muito graves, exigindo intervenções mais propriamente médicas e medicamentosas, mas estamos também convencidos de que há alguns princípios que não se devem perder, sob pena de caminhar à deriva e, quem sabe até, causar algum mal.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ