Temas e Controvérsias

UMA ENFERMARIA PARA CADA DIAGNÓSTICO

(QUE FALTA PODE FAZER UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA!)

Vem se tornando uma prática frequente, a divisão de pacientes em enfermarias¹ segundo critério do diagnóstico a eles atribuído. Há nisso uma total falta de senso histórico. Se E. Kraepelin (1856-1926) fizesse algo de parecido, as enfermarias tomariam como referência diagnósticos bastante diferentes dos atuais. Se fosse Kurt Schneider (1887-1967), o promotor dessa subdivisão, os diagnósticos já seriam outros. Hoje…bem! Há, certamente, muitos psiquiatras considerando que a psiquiatria chegou a uma espécie de “fim de linha”, no sentido da evolução da sua nosologia. Tudo aquilo que a humanidade desenvolveu, até hoje, nesse sentido, teria sido apenas para glorificar suas conclusões “definitivas”. A pergunta que se coloca, inevitávelmente, é quanto ao  porquê de tantos esforços no sentido da publicação de novas edições das classificações vigentes. Seria somente para vender livros? O futuro há de se rir de tudo disso.

A psiquiatria vive, verdadeiramente, uma época de grandes descobertas, e é compreensível que alguns, mais afoitos, tenham a impressão de que os conhecimentos que desenvolveram justificam uma subdivisão clara, baseada em limites muito precisos, entre as condições clínicas de que tratam. De uma coisa, estamos certos:

1- Ainda não existem sinais ou sintomas patognomônicos para quaisquer desses transtornos.
2- Os exames complementares que aplicamos, continuam a ser apenas COMPLEMENTARES, ou seja, não podem dispensar o bom raciocínio clínico.
3- Sempre que neles encontramos positividade, muito provavelmente, trata-se de uma condição com etilogia orgânica propriamente dita.
4- Nossa nosologia continua a incluir diagnóstico “intermediários”, como PSICOSE ESQUIZOAFETIVA e outros.
5- Quando conseguimos uma VALIDAÇÃO de cerca de 70% (passados dois anos) para um diagnóstico atribuído a grupo de pacientes, utilizando um instrumento qualquer, ficamos mais do que satisfeitos com esse instrumento.

Temos a impressão de que essas observações são suficientes para demonstrar como aquele critério é artificial. Bem mais provável, é que essa subdivisão sirva apenas para que os médicos perseverem, ainda mais, em seu olhar enviezado (ou “torto”, melhor dizendo) a partir de um erro inicial. Ninguém está livre de errar, desde que mantenha um nível razoável de desconfiança em relação à sua opção inicial, mas também uma abertura intelectual para acolher novos dados que possam enfraquecer a hipótese. Quem pode ignorar as pesquisas, hoje já clássicas, demonstrando que os psiquiatras “fechavam” um diagnóstico nos primeiros 3 minutos das entrevistas e gastavam os demais somente na confirmação daquela mesma hipótese? Esse é o comportamento médio das pessoas. Qual a melhor maneira, então, de evitar ou diminuir esse risco? Reconhecendo sua existência, discutindo o fato e, principalmente, criando dispositivos que o desestimulem. Esse não é o caso de uma enfermaria com aquele perfil, pois o reforça e cristaliza mais ainda.

A mente humana tem uma necessidade quase absoluta de classificar as coisas em geral. É através das classificações que desenvolvemos algum controle sobre o mundo que nos cerca. Quase sempre, entretanto, perdemos a noção de que a classificação é um “constructo” de um intelecto e não a coisa em si. Falamos delas como se fossem uma espécie de “ossatura” em torno da qual os fatos da vida se organizam, e não um mero “andaime”, que precisa ser desmontado e remontado de tempos em tempos. Por isso mesmo, quanto mais flexível forem, melhor, especialmente se destinadas a algo tão pouco conhecido como a mente humana. O maior risco reside sempre na adoção de uma conduta “procustiana”²: aquela que violenta o objeto de estudo, de maneira a que ele “caiba” nas classificações e conhecimentos de uma época determinada.

A fonte do problema, mais uma vez, deve ser buscada em uma tendência à separação entre pesquisa e clínica. Essa separação parece ter como objetivo a facilitação das pesquisas. Mais fáceis, com certeza, elas se tornarão, mas mais fiéis aos fatos da clínica e da vida? Em uma época em que, cada vez mais, dá-se valor a conceitos como ESPECTRO e COMORBIDADE, é razoável e útil uma separação artificial de pacientes da forma proposta? E a formação do psiquiatra, como fica em um ambiente que privilegia o artifício? Estamos formando pessoas para a clínica ou para outras finalidades? Ouvimos, certa vez, de um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros em psicofarmacologia, a comparação do pesquisador (nessa área) a uma pessoa que, à noite e em um grande estacionamento quase vazio, tenta, debaixo de um poste iluminado e com a chave na mão, abrir um carro que não está lá. A alguém que lhe diz: “V. não está vendo que o carro não está aí?“, ele responde: “É! Mas aqui tem luz!“. Há algum demérito nisso? Ninguém pesquisa o que acha ideal, nem a partir do ponto que deseja e, muito menos, sabe onde vai chegar. Pesquisamos, a partir de um ponto acessível aos nossos instrumentos, em determinado momento. Uma coisa é certa: há um enorme esforço de produzir “alguma luz”, ainda que as respostas mais importantes ou definitivas não estejam lá.

A grande esperança, é a de que, depois da reunião de muitas “cartas”, aparentemente isoladas, consigamos, finalmente, formar todo um “baralho”: uma teoria coerente que confira novo sentido às intervenções e/ou gere novos instrumentos. Foi exatamente o que aconteceu com a tabela periódica, criada por D. Mendeleev (1834-1901). Depois de reunir e sequenciar, sob a forma de cartas mesmo (dispostas sobre uma mesa), os diversos elementos encontrados, uma noite, enquanto cochilava, teve a intuição que levou àquela tabela.

No caso da química, pelo menos, os elementos (como novos possíveis planetas, para os astrônomos) estavam lá, à espera de sua descoberta. No nosso caso, tudo leva a crer que as coisas são muito mais complexas. As novas formas de organização das sociedades têm “produzido”—ou elevado muito sua frequência—de novos trastornos: “anorexia nervosa”, “burnout” e outros. Há fortes evidências de que devemos usar o diagnóstico mais como um instrumento de trabalho do que como “tatuagens” sobre a pele dos pacientes. Sem desconhecer a existência desses transtornos, é, no mínimo, uma atitude mais humilde diante de nossa ignorância quanto à etiologia e fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos, que os apliquemos também como “constructos”³ e não coisas em si. Sempre fazemos a pergunta, aos assistentes de um paciente qualquer: “Com que hipótese principal vocês estão trabalhando?”, uma vez que toda terapêutica precisa ser referenciada a uma hipótese diagnóstica.

¹Para os ambulatórios, não vemos qualquer prejuízo nessa subdivisão, desde que mantenham uma intensa “capilaridade” com algum ambulatório geral.

²Segundo a mitologia grega, Procusto teria criado um “leito ideal”, feito para um “hóspede ideal”: Se fosse menor do que o leito, esticavam-lhe as pernas. Se fosse maior, cortavam-lhe os “excessos”. Nossas teorias e classificações, continuam sendo tão procustianas!

³As próprias referências de localização: equador, meridianos, trópicos, não existem propriamente na natureza. São apenas instrumentos de trabalho.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ