Arte e Cultura

VIOLA D’AMORE

Um conto da cidade grande

Anoitecera havia pouco e Antônio não sabia o que faria da sua vida. Acabara de entregar um carro a seu dono, um homem que ele e seus comparsas tinham sequestrado pela manhã, e agora andava, sozinho e a esmo, em meio a uma forte chuva de verão. Um sentimento muito diferente de tudo o que tinha experimentado até então o invadia e isso era estranho e bom. Algumas das gotas que lhe rolavam pelo rosto tinham ainda um agradável sabor de sal.

PARTE 1
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“Deve ser assim que as pessoas enlouquecem”, pensava Antônio quando era assaltado por certos pensamentos. “Como Antônio cresceu…está forte… musculoso…” diziam as amigas da sua mãe sem conseguir esconder uma certa volúpia. Sim! Antônio tinha crescido muito ultimamente e estava se tornando cada vez mais taciturno. Era um mulato acobreado de boa estatura e forte compleição. Já quando descia para o asfalto, o retrato que lhe mostravam dele mesmo era bem diferente, talvez reforçado pelo olhar duro que desenvolvera nos últimos anos…aquele que vinha do MEDO… percebido nos olhares de cada velha um pouco mais arrumada e de cada mãe de crianças brancas. “Assuma o seu papel!”, pareciam lhe cobrar e gritar. E ele sabia muito bem que papel haveria de ser esse. E dizer que o maior prazer de que se lembrava vinha exatamente do olhar de admiração daquelas mesmas mulheres, quando, pelos seus 6 ou 7 anos, as abordava na rua, em geral depois de escapar das mãos de sua mãe e, numa breve corrida muito livre e com o sorriso mais amplo que pode caber em um rosto, dizia: “OI”, olhando-as diretamente nos olhos…e elas sorriam de volta com um olhar de prazer e aprovação. Aquilo valia uma vida e talvez ainda o estivesse alimentando, embora houvesse o risco da inversão total de sentimentos. Sim, a decepção pode ser muito perigosa! E quando conseguia que algum menino muito branco e tímido também se libertasse um pouco das saias da mãe…e se aproximasse! Talvez fosse a alegria do poder de fazer bem! Quanto prazer nos afagos de admiração que recebia em seus cabelos esponjados!
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Mas tudo tinha mudado! E como! Os belos e doces sorrisos…!? Tinham ficado pelo meio do caminho… O mundo agora parecia se resumir a quem é mais forte do que quem…quem vai causar mais medo a quem…. Onde aquela alegria do encontro com um rosto simpático qualquer, como acontecia em outros tempos? Sim, pois essa tal de simpatia costumava ser imediata; bastava um olhar e o essencial estava dito! Onde tudo aquilo fora parar? Seus amigos de infância também andavam meio ressabiados com ele, sem saber como lidar com suas mudanças súbitas de humor. Um empurrão em um deles, por um deboche tolo de sua sisudez crescente, machucara o rapaz mais do que o esperado e isso levou Antônio ao pior de todos medos: o dele mesmo. Aquelas atitudes o aproximavam cada vez mais do “rubicão” simbólico, talvez sem volta, de uma ligação com o crime. Era quase uma lei vigente por ali e aplicada aos mais fortes e violentos. E quantas explosões pelos motivos mais tolos e infantis. Quem sabe nisso não estaria sua salvação?! Um dia, quase quebrara a TV ao reparar em um velho vestido de aviador, com os cabelos em forma de asas e que chorava quando contrariado, dizendo “Aí eu choro…UAU..UAU…”. Como era possível que se mostrasse algo tão ridículo assim, na TV e para todo mundo? Como aquele velho podia não ter vergonha daquilo?! Depois do estranho ódio, um ternura imensa, avassaladora mesmo, como se quisesse abraçar o pobre velho. A dor ridicularizada, ele sentia, era muito verdadeira: o velho sofria de verdade e estava prestes a morrer…! Uma certeza esmagadora…e estranha. Sim! Devia ser assim que as pessoas enlouquecem.
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Em seus contatos no “asfalto”, e preocupada com os caminhos que o filho poderia seguir, sua mãe arranjou-lhe um emprego em uma tinturaria. Seu filho era muito cuidadoso com as roupas e isso era já um começo. Para surpresa de muitos, ele até que gostou da nova atividade. Ficava no fundo mal arejado da loja, longe do balcão e da exposição das roupas prontas. E com que prazer baixava e apertava as pranchas quentes e almofadadas sobre roupas úmidas! Tudo ali cheirava a limpeza e era bom. O ruído da evaporação era tão agradável que parecia entrar até pelas narinas. E com que prazer aspirava esse vapor nos dias frios daquele inverno! Sofrera, na infância, de dificuldades na respiração e o vapor quente era quase uma libertação. Um casal de portugueses o recebera bem, assim como a duas mulheres negras e muito discretas que também ali trabalhavam. Fregueses? Só de relance e em olhares furtivos. Sim! Algumas mulheres pareciam olhá-lo com um interesse que ele não entendia bem. Talvez sua função de agora despertasse nelas mais confiança e curiosidade. Agora, entretanto, quem perdera a confiança nelas era ele mesmo. E Antônio não sabia mais como lidar com o mundo que o queria arrastar.
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Nos meses que se seguiram, de lá do seu cafofo, como brincavam com ele, Antônio começou a conhecer e reconhecer as pessoas pelas suas vozes. Algumas eram tão agradáveis que ele arranjava uma desculpa para se aproximar da luz do dia e matar a curiosidade quanto ao seu dono ou dona. Mas havia uma, em especial, que lhe causava um profundo mal estar. Era uma voz aguda e estridente de um homem seco e de pescoço curto. Tinha estatura média, nariz pontudo e uma repugnante cara de fuinha. Antônio soube depois que se tratava de uma pessoa “importante”, um promotor talvez viciado em infernizar muitas vidas por aí. Como disse um pensador “Você diz que faz uma profissão? Talvez ela faça você”. Em cada palavra sua…um enorme desprezo pelo interlocutor. Levava ternos para lavar e era muito exigente. Somente em poucos momentos, e de relance, o olhar de Antônio se cruzara com o dele e poucas vezes dois seres mostraram, um pelo outro, sentimento tão profundo de aversão. “Por que ele não manda algum empregado trazer sua roupa? Seria mais fácil!”. Antônio começou a ter a impressão de que aquele homem mirrado estava indo lá demais e sentia medo. Sabia que precisava ficar longe dele! Parecia que colocar ternos (e outras peças) para lavar se tornara parte dos programas de uma vida um tanto vazia quando fora do trabalho. Mas o que mais incomodava a Antônio era a submissão generalizada que via na loja em relação ao homem seco. Estava tentando proteger os que amava? Ou sentia pulsar nele mesmo um afã de macho alfa que não pode sofrer humilhações por parte de um inferior?
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Tudo parecia conspirar contra Antônio naquele dia quente. A secura do ar estava quase insuportável. As montanhas começavam a fumegar e ele não se sentia bem. Não chovia havia semanas e as pessoas pareciam estar mais irritadas do que de costume. Passava das 13:00 e a fome o assaltava. Quando estava saindo para almoçar, seu patrão pedira, um pouco rispidamente, que ficasse mais um pouco, pois havia algo que precisava ser entregue dali a pouco. E foi quando, lá de dentro, ouviu: “Quem foi que manchou meu terno? Quem? Quem?”. O homem seco estava lá e não se satisfazia com a admissão do prejuízo pelo dono, exigindo saber quem era o responsável pelo “mau ato”. Devia ter esperado longamente por esse momento. Sabia que era inevitável: aquele dia haveria de chegar! E com que prazer procurava pela pessoa responsável. Aquilo só podia ser um crime, intencional mesmo, e todo crime tem que ser punido… Antônio sabia que não devia chegar perto enquanto aquele homem continuasse por ali repetindo suas frases ofensivas. E como sofria com a submissão dos que se desculpavam bem baixinho!
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Por azar, alguém o chamou do outro lado da loja e Antônio teve que passar perto do balcão, bem próximo ao homem que não parava de falar aos seus ouvidos, como uma serra elétrica. Alguns passos adiante, ele ouviu com clareza: “Deve ter sido esse sujeito daí!”. Nunca se teve certeza se isso teria sido mesmo dito. Os balcões dessas lojas costumam ter uma passagem levadiça que se move sobre dobradiças. Antônio, em ato quase reflexo, agarrou a sua extremidade e a atirou, girando com toda a sua força em direção ao homem que esticava o pescoço curto e ameaçador. A quina da madeira atingiu a base de seu nariz, bem abaixo do olho, abrindo uma pequena ferida…e algum sangue correu. SILÊNCIO e pasmo generalizado! Ninguém sabia o que fazer. Antônio apenas olhava o ocorrido, pois parecia ter sido independente dele. Até que as mulheres do povo agiram. Tomaram uma toalha limpa e levaram o homem que gritava ameaças e impropérios (“Não saia daí”…”Não saia daí”, repetia ele entre os xingamentos. “Eu vou voltar”...) a uma farmácia próxima de onde foi a uma clínica e levou uns poucos pontos.
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Na DELEGACIA…o “crime perfeito”…Bem pior do que o ferimento no rosto foi a incapacidade do promotor de enquadrar Antônio em algum crime. Nem que ele tivesse planejado conseguiria imaginar algo tão bem feito. Para todos os efeitos—legais pelo menos—nada mais fora do que um ato desastrado de um funcionário irresponsável e pouco cuidadoso que levantou a passagem com força demais. E o homem quase arrancava os fios de seus cabelos ralos diante da incapacidade da LEI de prever situações como aquela. O homem da lei quase ousava dizer: “que se danem as leis! Se eu estou dizendo, então tem de ser assim!”. Caso contrário, todo o seu poder estaria abalado. Sua única chance era uma confissão. E essas, em geral, são associadas a um certo desmontar de um personagem. Mas quem disse que Antônio estava representando um personagem? Nunca ele fora tão ele mesmo! Talvez porque incarnasse todas as raças perseguidas de todos os séculos e continentes! E Antônio nada dizia, absolutamente nada! Apenas olhava o homenzinho seco…fixamente… impassível…quase como um TOTEM redivivo, retornado por algum atavismo insuspeitado. E era um totem de muitos continentes: da África à Ilha da Páscoa, passando pela Austrália, Nova Zelândia e A. do Norte, nas muitas migrações dessa espécie inquieta! E então, a bufonaria do homem seco e revoltado foi se tornando mais e mais óbvia aos olhos de todos. A tal ponto que, em certo momento, ele mesmo pareceu mais interessado em dar um fim à situação cada vez mais constrangedora. O patrão de Antônio conversou em particular com o promotor e o delegado, assumiu as despesas e prometeu a demissão do empregado para aquele mesmo dia. Mais tarde, quando Antônio voltou para a tinturaria e todos foram informados do “acordo”, o vapor que subia da atividade ajudou a disfarçar algumas lágrimas de mais de uma pessoa.
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PARTE 2: CRUZANDO O RUBICÃO
Os dias que se seguiram foram de total solidão e revolta. Até que um dos seus antigos amigos de infância, dos muitos que tinham se associado ao crime, convidou Antônio para fazer um “serviço”. Havia muito que ele tentava atraí-lo e dessa vez encontrou o terreno preparado. Sairiam pouco antes do amanhecer e Antônio praticamente não dormiu. A coisa toda foi muito rápida e ele quase não fez nada, ficou meio tonto, perdido mesmo, mas sua compleição impunha respeito e ele não chegou a atrapalhar. É muito difícil “vencer” ou violentar a própria índole. Em um sinal de trânsito, tomaram um carro com um homem sozinho que foi atirado, depois de uma coronhada, para o banco do carona, enquanto a arma era passada para Antônio já no banco de trás. Quando chegaram ao destino, no alto do morro, era já dia claro e havia um outro comparsa esperando em um barracão. Na vizinhança todos sabiam do que se tratava, mas ali ninguém ousava denunciar nada. O homem não ofereceu muita resistência e pareceu não se apavorar demais com a situação. Foi amarrado e colocado a um canto, enquanto tomavam sua carteira e seus cartões. Antônio, que sentia uma estranha familiaridade com as feições do homem, teria a função de ir ao banco o mais rapidamente possível e, nos caixas eletrônicos, retirar o dinheiro que fosse possível, retornando à tardinha. Todos ali confiavam nele.
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Os 2 bancos ficavam entre a R. Sta Clara e a C. Ramos, local que Antônio conhecia muito bem, pois costumava, dos 10 aos 12 anos, vender balas nos sinais próximos à Av. Atlântica. E foi ao chegar ali que se lembrou plenamente do homem sequestrado. Por várias vezes ele parara naquele mesmo sinal com o seu “Del Rey”. Eventualmente o homem comprava alguma coisa, mas sempre sorria largamente para o menino que sorria de volta. Por um momento, Antônio encontrava aquele antigo prazer com um olhar de apreciação, mas era muito fugaz. Por vezes o homem passava com a mulher e 3 filhos mais ou menos na sua idade e Antônio os seguia longamente com o olhar. E o horror de pensar no mal que lhe estava fazendo veio junto com os bons sentimentos revividos! Bem…agora era dar um fim à situação, e o mais rapidamente possível. Terminou o que tinha que fazer e logo retornou tendo feito apenas um lanche. Chegando, ficou triste em ver o quanto seus comparsas se compraziam em tentar perturbar o homem provocando-lhe medo
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A etapa seguinte envolvia muitos riscos e se daria assim que começasse a escurecer, antes da formação de batidas policiais: liberar o homem amarrado em lugar ermo e levar o carro até um local de desmonte onde receberiam ainda algum dinheiro por ele. Contrariamente ao combinado, Antônio insistiu em realizar também aquela etapa, e sozinho.
Desde quando você sabe dirigir, Antônio? …Carteira eu sei que v. não tem! Perguntou seu comparsa, aquele que comandara as ações. “Aprendi sim e sei muito bem. A gente só precisa descer e lá embaixo eu pego”. 
Antônio nunca diria como tinha aprendido rudimentos de direção! Com um homem muito simpático que o tentara seduzir depois de algumas “aulas” nas quais ele se saíra muito bem. Tinha sido muito estranha aquela simpatia agora um tanto maculada, mas recebida sem maiores problemas. Tinha sido apenas assim! Nenhum desejo e tudo tinha se resolvido sem mágoas ou humilhações….ao menos parecia.
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Antônio deixou o dinheiro que tinha conseguido e ficaria com o que recebesse pelo carro em uma oficina já avisada da transação. O banco do carona foi deslocado o mais à frente possível, colocaram o torso amarado do prisioneiro naquele espaço, desceram o encosto do banco e as suas pernas foram dispostas atrás do banco do motorista, também chegado um tanto à frente. Armava-se uma tempestade e começara a chover quando, depois de se certificar de não haver qualquer viatura policial nas proximidades, eles começaram a descer. A chuva era bem vinda por muitas razões, inclusive por ser menos provável que a polícia estivesse fazendo batidas.
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Quando estavam a caminho, e já sozinho com o prisioneiro, Antônio apertou maquinalmente um dos botões do rádio e ouviu um som muito diferente de tudo o que já ouvira até então; como que vindo de um violino áspero, arranhando não somente uma corda, mas também algo dentro dele mesmo, e profundamente. Depois de alguns compassos, desligou o rádio, incomodado com o som entrecortado, um gemido repetitivo que o feria. Desligou…mas continuou a repetir mentalmente o som e o tema que ouvira algumas vezes, parecendo implorar compreensão, um afago ou coisa assim… Raiva e impulso de quebrar o que o invadia sem que ele pudesse fazer nada contra a repetição. Era um gemido, em sutis variações e de todas as maneiras; de quem precisa se salvo de algum perigo indefinido. E então, depois de alguns segundos, seu dedo se moveu quase que sozinho para apertar de novo o botão do som. O gemido repetitivo continuava e parecia vir junto com alguns soluços; alguém implorando algo que nunca virá. E Antônio tinha a impressão de antecipar cada frase, como se a música saísse dele e naquele mesmo momento. Temos dois hemisférios e uma estrutura de ligação que pode se atrasar um pouquinho…ou uma eternidade, dependendo do nosso estado mental. Ao fundo, um outro som, quase uma voz…grave, consoladora e boa, como que assegurando a todos de que tudo haveria de se resolver, desde que não se desesperassem. E Antônio ficou ouvindo interminavelmente os estranhos sons, até que lágrimas começaram a rolar em seu rosto. Fazia tanto tempo que ele não chorava! Silêncio…Mas não tinha acabado, e a música agora era de uma alegria imensa. Mas uma alegria diferente, que incorporava e trazia consigo toda uma dor vivida havia pouco… Seria aquela a conquista anunciada? A dor continuava lá, estranha, profunda e talvez até maior… Com ela, entretanto, um prazer que Antônio não conhecia; “explodindo” em um ataque violento do solista anunciando o final. E com que segurança ele percebeu que “entendia” a antecipação do final…e da vitória, sabe-se lá de que e de quem! Talvez da própria vida. A orquestra concluiu a unidade perfeita, agora mais do que só intuída. Quando acabou a segunda música, assim Antônio pensava ser,  ouviu-se um locutor: “Concerto para VIOLA D’AMORE e orquestra, em Ré menor, RV 393, de VIVALDI…Rádio MEC-FM!”. Tinham  escutado apenas seus dois últimos movimentos (a partir do minuto 4). Quem sabe se, escutando agora o primeiro movimento do concerto (ironicamente chamado “Allegro”), não perceberia a antecipação do luto enorme que seria vivido um pouco mais à frente. Havia já naquele “allegro” uma sombra que a todos envolvia com um acento melancólico. Mas tudo guardava ainda uma imponente solenidade. Só dali a pouco a criança tomaria o mundo nas suas suas mãos e espalharia ternura, entrega e resignação através de sons. Nisso podia estar a salvação. Poucas vezes uma unidade foi tão alcançada nos movimentos de um concerto.
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Por fim, Antônio parou em uma rua que quase não tinha trânsito, desligou o carro, baixou os faróis, deu a volta no carro abriu a porta de trás, sentou o homem cuidadosamente no banco e começou a desamarrá-lo. Seus olhos não tinham se cruzado durante todo o trajeto e ele baixou o olhar de imediato. Por fim, murmurou um tanto envergonhado: “O que é uma VIOLA D’AMORE?”. O homem, um tanto surpreso, mas feliz por encontrar uma linguagem com o seu sequestrador, respondeu “É um tipo de violino muito antigo…com som um pouco diferente”……”E quem é esse Vivaldi?“. “Um italiano, que era padre……..Antônio Vivaldi”….”AH! Ele era Antônio também?” disse ele sem se dar conta da indiscrição e já bem mais à vontade. E o homem, que adorava falar de música procurou por uma curiosidade qualquer para dizer: “Dizem que ele foi proibido de rezar missas porque parava o culto prá escrever um tema que lhe vinha à cabeça”….”É mesmo? Quem sabe não foi uma dessas daí?”…”Sim…Quem sabe?”. Um longo silêncio enquanto os nós eram desatados. Se não fosse a chuva as coisas poderiam se complicar. Até que Antônio não resistiu e cometeu a maior indiscrição possível: “O Sr vendeu aquele Del Rey?”. Até o carro ele tinha envolvido em sua ternura de agora, mas talvez desde muito antes. Surpresa total….“SIM”. A discrição do homem, aliada a um estranho medo de invasão das vidas, obrigou-o a um silêncio pesado e quase mortal… E Antônio não parou: “E seus filhos… são 3 não é? Tá tudo bem?”. Continuava de cabeça abaixada, como se o poder tivesse mudado de lado e só restasse a vergonha. Mais surpresa ainda… “SIM”, respondeu o homem um tanto vacilante. “O Sr me desculpa tudo isso? Lembro bem do senhor e não se preocupe que nada de ruim vai acontecer”. Sim, podia haver um outro tipo de poder em Antônio, mas haveria de ser por uma reparação quase impossível. E ele julgava poder salvar aquele homem para sempre e de qualquer ameaça. Em seu transbordamento de generosidade, porém, não se dava conta de que poderia estar lhe causando um mal ainda maior.
Depois de afrouxar todos os nós e laços, Antônio se afastou um pouco e esperou que o homem terminasse de se soltar: “As chaves estão aí no carro….Não vi se mexeram nos documentos”. Como o homem parecesse relutar, Antônio quase implorou: “Por favor…pega o carro e vai embora. Eu me viro por aí!”. O homem contornou o carro, motor girou e o carro seguiu, um pouco lentamente, até desaparecer em uma curva.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ