Arte e Cultura

A GENTE CORRE NA BRS3…E A GENTE MORRE NA BRS3!

(“Enchendo a burra de dinheiro…!”)

Comecei a pensar nesse texto quando do atropelamento e morte do pai de uma amiga do IPUB por um ônibus. O desastre na AV. Brasil (com 5 mortes) levou à sua configuração! Desde então, aconteceram outros!

Quando viajei sozinho pela primeira vez em um omnibus (era assim que se escrevia), fui invadido por uma enorme sensação de liberdade. Nunca abandonei completamente essa sensação, ou fui por ela abandonado. Continuo a ter grande prazer em andar no transporte público. É bem verdade, porém, que não o faço nos seus piores momentos. O advento dos tais corredores de trânsito, anunciado com pompa e circunstância pela Prefeitura—e até por sua sigla em inglês, denunciadora de um subdesenvolvimento já um tanto anacrônico—foi motivo de muita curiosidade e até apreensão.

Efetivamente, viajar de ônibus tornou-se, em muitas situações, bem mais rápido do que em automóveis particulares. Havia mesmo algo a ser feito e—deixando de lado o fato de que todo aquele aparato deveria ser para servir bem às pessoas—a funcionalidade do processo foi bem executada. O nível de estresse e de tensão permanentes, porém, tanto para os que estão nos ônibus quanto para os pedestres que atravessam ruas (ou esperam a beira das calçadas), elevou-se sensivelmente. Perguntei-me logo: que tipo de acordo houve para fazer desabar o mínimo de cuidado observado pelos motoristas aos aspectos mais humanos de sua profissão?

Não poderia ser uma questão meramente individual, pois quase todos ficaram como que transtornados na sua atividade diária e de um momento para o outro. Só poderia ser algum acordo envolvendo autoridades da Prefeitura e os donos de empresa visando: diminuir o número de ônibus em circulação, aumentando sua velocidade e o número de suas viagens diárias, de maneira a proteger o “lucro sacrossanto”. Muito provavelmente, devem ter instituído alguma gratificação para os motoristas que atingissem certas “marcas”*. Quantas marcas, meu Deus! Caso tomemos índices frios como referência, diremos que o Prefeito tem competência. Mas sua sensibilidade aos aspectos mais humanos das coisas é um desastre. Foram instituídos no Rio vários “corredores da morte” em suas vias principais. Segundo a mentalidade vigente, as pessoas continuam morrendo na contra-mão e atrapalhando o trânsito. Algo de parecido aconteceu com os cor pos removidos junto com o entulho, menos de 48 hs depois do desabamento de um prédio no Centro. É o clima estabelecido: as pessoas são apenas figurantes de um processo que tem que funcionar, ainda que contrariamente aos seus interesses.

Certo dia, ouvi um interessante diálogo entre um motorista e um homem sentado em um banco próximo. Dizia esse: “Eu?!! Só prá eles encherem a burra de dinheiro?! Eu não! Eu fazia 3 viagens e eles queriam 4! Comigo não!”. Fiquei ouvindo por mais um tempo o quase monólogo daquele que era, certamente, um motorista recém afastado da atividade. O outro, ainda submetido à pressão, e talvez um tanto envergonhado, apenas se calava. Tive vontade de pedir mais informações, mas fiquei um tanto inibido. Pensariam que eu era um fiscal, ou coisa parecida. O que eu ouvira fora suficiente e na forma mais expressiva que poderia imaginar. Enquanto eles “enchem a burra de dinheiro”, o povo que paga, direta ou indiretamente, é transportado com menos cuidados do que os dispensados aos cavalos de raça ou ao gado.

No acidente que matou 5 pessoas (até agora) na Av. Brasil, esteve envolvido um ônibus—cujo motorista trafegava talvez tentando completar as 4 viagens diárias— que carregava 22 multas por excesso de velocidade em um curto período. Achando que diminuiria sua responsabilidade, a empresa declarou que as multas tinham sido com motoristas diferentes e sem qualquer relação com o acidente. ATENÇÃO: HÁ AQUI UMA CONFISSÃO QUE PRECISA SER APROVEITADA: O PROBLEMA É MESMO GENERALIZADO. Não é uma questão de um motorista ou outro, mas de um clima que se formou em torno dos ônibus do Rio, do qual todos somos vítimas, até mesmo (e talvez principalmente) seus motoristas. A responsabilidade é da PREFEITURA  e dos donos das empresas.

Por favor! Não deixemos que eles reduzam esse problema à mera questão da prevenção de acidentes. Não esqueçamos da qualidade de vida e do direito de ser transportado com urbanidade, além da segurança. Não deixemos que se separem as duas coisas! É essa urbanidade, intrínseca ao cuidado com a vida humana, que há de evitar as mortes. Tenho duas filhas na Suécia, país que tem muito a nos ensinar, especialmente quando se trata de urbanidade e respeito à vida humana. Quando, por lá, morre uma pessoa em acidente envolvendo ônibus é um motivo de interesse e consternação nacional. Vi, em uma esquina, uma singela lembrança da morte de uma menina por um ônibus que deslizou lentamente por sobre um gelo fino recém formado. A menina morreu por excesso de co nfiança. Não tinha qualquer dúvida de que o motorista iria parar. É fácil imaginar o desespero do motorista sem poder controlar aquela máquina transformada subitamente em um monstro. Por muito tempo, as pessoas que por lá passarem, vão continuar a lembrar daquela morte que teimará em não ser apenas mais um número morto nas estatísticas mortas.

Por fim, sempre é possível algum humor! Quando começou essa correria de lotações no
final da década de 1950, M. Bandeira e Quintana atravessando uma rua, e vendo que um ônibus ao longe se movimentava, disseram um para outro “Corre, corre, que ele já nos viu!“. Estava criado um clima de predadores e presas.

*Cheguei a ver também os lotações, cujos motoristas recebiam por passageiro, disputando-os desesperadamente. Quando estavam “lotados”….é fácil imaginar! Oscarito, em “Nem Sansão nem Dalila” fez um deboche da situação. Houve acidentes horríveis—um entrou por uma padaria— até que o sistema fosse condenado. Paes e os donos de Empresas de ônibus devem ter ressuscitado um aleijão parecido.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *