Arte e Cultura

CFM: UM ATAQUE À CULTURA POPULAR BRASILEIRA!

(Revista “de Humanidades” associando o samba ao pior em nossa história)

Márcio Amaral

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bandeira_sambaA propósito de discutir a corrupção e seus determinantes histórico/sociais, a “Revista de Humanidades médicas do CFM*” cometeu um enorme atentado contra as raízes de nossa cultura popular. O título de sua matéria (maio/agosto 2013): “Para não acabar em samba: transparência e controle social”. Bem…eles não são obrigados a saber—embora até as crianças o saibam—que a expressão verdadeira é “Acabar em pizza”, derivada, talvez, de uma outra: “mezza aliche, mezza mussarella”, como a dizer que a situação vivida é de “enrolação”, engodo, etc. e que não serão tomadas providências para sua solução. Já o “Acabar em samba”, ao contrário, fala do que temos de melhor na cultura carioca: “…E acabava em samba/Que é a melhor maneira de se conversar…Tanto chopp gelado, confissões à beça/Meu Deus, quem diria que isso ia se acabar…”.(Hermínio Belo de Carvalho)! Melhor mesmo seria deixar de lado aquela gente pernóstica e totalmente ignorante em relação à nossa cultura e ir mudando de conversa. Antes disso, porém há algo mais a ser dito. Afinal, era uma Revista da  maior entidade médica.

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Ninguém está livre de uma “escorregadela”, especialmente quando fruto da ignorância. Mas os articulistas (responsáveis pela matéria) foram contumazes em seu ataque ao samba e à cultura popular (carioca em especial): todas as 3 belas ilustrações da matéria faziam uma associação direta do samba, das escolas de samba e do sambista com e a origem do grande mal, a CORRUPÇÃO. Está entranhado em alguns esse preconceito nada sutil. Mas quem pensa assim sofre de um outro tipo de corrupção: a dos valores culturais de seu próprio povo, agindo como se fossem “filhos de chocadeira”. Em certos momentos, a matéria até atacava a raiz verdadeira do problema: “…a percepção de que na Casa Grande tudo pode…”. Mas a alma da matéria eles não conseguiram esconder: um ataque às expressões populares, especialmente cariocas, como “a malandragem e o ‘jeitinho brasileiro'” (Roberto da Matta). Pareciam dizer que na “na senzala nada pode”, especialmente a enorme alegria da qual os pseudointelectuais morrem de inveja**. Para dar uma aparência de respeitabilidade a esses ataques, nada melhor do que recorrer a um antropólogo, mestre em contorcionismos verbais de maneira a esconder seu ranço em relação a tudo o que é brasileiro. Roberto da Matta deve mesmo se sentir uma espécie de“Antropólogo em Marte” (com o perdão de Oliver Sacks e seu belo livro). Mas deixemos essa gente pernóstica “prá lá” e vamos demonstrar como os verdadeiros intelectuais brasileiros amavam seu povo e sua cultura.

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NOTAS: *Há, nesse título, uma confissão de que as HUMANIDADES estão passando longe da atividade médica. Pois se deveriam estar entranhadas em tudo!
**Tocar violão já foi motivo para prisão e espancamento: “Pai Francisco entrou na roda/ Tocando seu violão, Parãrãpãpão/ Vem de lá seu delegado/ Pai Francisco foi prá prisão…(depois do espancamento)..Como ele vem todo requebrado!/Parece um boneco desengonçado!. Hoje o espancamento tende a ser moral, mas a INVEJA que têm da alegria do povo continua a mesma.
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Se há um traço marcante dos nossos maiores artistas e intelectuais, é a sua enorme ligação, visceral mesmo, com a cultura popular brasileira. Quem conhece bem a história dos grandes artistas europeus sabe o quanto viveram em conflito com sua época e até em relação ao seu próprio povo. A lista seria enorme: de Beethoven a Baudelaire; de Maupassant a Rimbaud, passando por Verlaine e Wilde. Já M. Bandeira, M. de Andrade, M. Quintana, Cecília, Drummond de Andrade, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Djanira e outros, não somente procuraram pela nossa gente mais simples: encontraram-na dentro deles mesmos. Com isso, reencontraram-se com eles mesmos. Incorporaram sua linguagem e seu lirismo, tornando-se uma espécie de voz de seu próprio povo! Villa-Lobos chegou ao exagero (tudo nele era tão exagerado!) de dizer: “O folclore sou Eu”. Quem sabe uma paródia de um certo rei francês? O FOLCLORE ‘vs’ o ESTADO, não deixa de ser muito interessante o contraste, pois as investidas do ESTADO costumam estragar as expressões folclóricas. Bem…A relação entre G. Vargas e Villa são um desmentido da tese. Desde que muito cuidadoso, algum suporte (nunca INTERVENÇÃO) pode até ajudar à expansão de certas manifestações sem as conspurcar (sujar mesmo).

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Eu estava decidido a fazer um apanhado das manifestações de vários daqueles artistas sobre o samba especificamente. Fui reler a crônica da M. Bandeira “O Enterro de Sinhô”  e tenho a impressão de que nada mais precisa ser dito além do que vai ali. Por fim, e lá no fim, vai um samba “tipo enredo que nunca servirá de enredo” em homenagem ao próprio Bandeira…o mais injustiçado, dentre todos os nossos artistas, pelas Escolas de Samba! Há tanto CARNAVAL em sua obra!

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O Enterro do Sinhô
J.B SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas…Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo…Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite…Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando…vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um “beijo puro na catedral do amor“, enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica… Sinhô!

Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão….

Sinhô cantou, se acompanhando, o “Não posso mais, meu bem, não posso mais“, que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico…Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.

Seu corpo foi levado para o necrotério…perto do Mangue…A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura…), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins…mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas… Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?)….Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.

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UMA PASÁRGADA NA AVENIDA!

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Bandeira!

Ergue bem alto o estandarte

Mostra pro povo a sua arte

A força da sua inspiração

Faz

Da sua Pasárgada a Avenida

Desfila aqui a sua vida

De poesia, luta e resignação

Aponta prá nós

A sua estrela da manhã

Os caminhos da felicidade

No anjo que herdou de sua irmã*

Desvenda que é bom

Todos mistérios da amizade

Com Cecília, Quintana e Drummond

Especialmente Mário de Andrade.

Derrama no espaço

A alegria que eu tomo

Vem cair no nosso passo

Evoé Baco! Evoé MOMO!

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REFRÃO

Onde andaste cotovia?

“Líbia quente, Cítia fria

Europa, França e Bahia….

Andei onde deu o vento

Onde foi meu pensamento

Vi sítios que nunca viste

De um país que não existe..”

“E o que trazes para o triste?” (PAUSA bem curta e expressiva)

“Voltei te trouxe ALEGRIA!”

*Oscilei entre 3 versos, todos aludindo à vida e obra do poeta:

“Em todos os segredos da maçã” ( do poema “Natureza Morta)

“Sob a inspiração do Grande Pã” (Referência a Jesus em “A Morte de Pã”)

Fiquei com a irmã Cândida e seu anjo que veio substituir o de Bandeira “Um anjo moreno, violento e bom/Brasileiro/Veio ficar ao pé de mim”. Quem conhece Bandeira sabe do seu papel na vida do poeta.

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