Arte e Cultura

HAMLET: UMA CONDENAÇÃO À PRÓPRIA MONARQUIA?-II

(E Hamlet terminou por destruir a própria obra de seu pai)

Márcio Amaral-vice-diretor IPUB

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“…Para fugir ao TÉDIO os homens procuram aquilo que os pode movimentar fortemente…e o povo acorre à execuções…É nos século das paixões encarceradas que o tédio desempenha seu papel de móvel universal! (“DO ESPÍRITO”, C.A. Helvetius: OS PENSADORES, Abril Cultural)

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NOTA: não posso me furtar a assinalar algumas inconsistências nessa grande obra. O adulto Hamlet (quase 30 anos*) seria o herdeiro natural do trono diante da morte de seu pai; não o irmão deste, o assassino. A não ser que na Dinamarca os códigos na realeza fossem outros. Chega a ser estranho que ninguém o tenha assinalado e valorizado. Sendo assim, o fato dessa herança natural não ocorrer implicaria uma DESCLASSIFICAÇÃO prévia de Hamlet, que somente seria compreensível (não necessariamente justificável) diante de uma possível doença (mental?) prévia. Não parece ser o caso, pois o príncipe teria muitas virtudes e seria muito apreciado pela gente do povo. Sendo assim, teria havido uma dupla usurpação da qual a rainha seria cúmplice. Só para assinalar o quanto são desastrosos os heróis dessa tragédia: ao final da peça, e sem que houvesse uma confrontação franca qualquer (de vida e morte), seus 9 principais personagens estavam mortos. Convenhamos: não há muita dignidade a eles associada.

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Antes de tudo, teria sido por seus próprios pecados que o ESPECTRO estaria vagando pela Terra: “…até que os crimes cometidos em meus tempos de vida tenham sido purgados…se não me fosse proibido narrar os segredos das profundezas/Eu te revelaria uma história cuja palavra mais leve arrancaria as raízes de tua alma/E gelaria o sangue da tua juventude/Fazendo teus dois olhos abandonarem as órbitas…”. E foi assim que o espectro do pai arrancou as raízes da alma de Hamlet; gelou o sangue de sua juventude e aproximou-o da alegoria da CAVEIRA contida nos “olhos que abandonam suas órbitas”. Deixemos as simpatias pelos derrotados e assinalemos em alto e bom som: o ESPECTRO cometeu um grande mal ao seu próprio filho e aos demais. Sua única desculpa é: havia mesmo algo de muito podre no Reino da Dinamarca, e essa podridão (considerando haver uma MORAL mais elevada nas relações humanas) seria mai do que suficiente para que tude degenerasse por lá…sem que se precisasse de espectro algum.

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HAMLET: UM TÁBULA RASA DE VALORES?

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Vagando através de um quase nada, depois de ouvir que seu tio (o usurpador) é o assassino de seu pai, Hamlet confessa o vazio de seus valores: “…Vou apagar da lousa da memória/Todas as anotações frívolas e pretensiosas/Todas as ideias dos livros, todas as imagens/Copiadas por minha juventude e observação…/No livro e no capítulo do meu cérebro/Viverá apenas o teu mandamento…” . Ou seja: abandonaria toda a sua própria história para abraçar aquilo que um ESPECTRO lhe soprou. Sua história não devia valer grande coisa! Poucas vezes uma auto anulação foi afirmada de maneira tão enfática. Há nisso um aparente paradoxo…como todos. Mas o próprio Shakespeare se encarrega de debochar do Espectro através de Hamlet que, em outro momento, parece não levá-lo tão a sério. Quando começa a sua trama de eliminar o novo rei e exigindo um juramento de silêncio (por parte de todos os que tinham visto o espectro), este ordena da profundezas: “JUREM!”. Ao que Hamlet retruca (diante da repetição da ordem cavernosa): “V. está em toda parte, hein?…Muito bem ratazana! V. cava depressa sob a terra!…O rei da mineração! Vamos mudar de novo de lugar…! …Repousa espírito confuso!…” (final do primeiro ATO).

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Não fica muito claro se os 2 amigos presentes de Hamlet também ouvem as ordens do espectro, mas tudo ali parece expressar um excesso do próprio Shakespeare; um “CACO OFICIAL” (um deboche escapado no próprio texto?**), para usar uma linguagem de teatro. Postos lado a lado, esses 2 grupos de citações (a primeira idealizadora e a segunda debochada) soam muito absurdos, tornando quase impossível sua aceitação. Atribuir tudo à loucura de Hamlet seria um recurso muito pobre. Foi o nosso G. Ramos quem assinalou o risco da loucura de um personagem servir para tudo explicar, como se as produções dos loucos não tivessem ligação com sua vida. A loucura, afinal de contas, não é de todo absurda e seus conteúdos talvez possam ser chamados de “cacos de uma vida…em cacos”. Shakespeare sabia disso muito bem e a loucura de OFÉLIA é tremendamente convincente—talvez a mais convincente de todas as apresentadas em obras de arte—inclusive por seus fragmentos de fala expressando um EU em frangalhos. O PATHOS da sua tragédia subjacente pode ser percebido através da sua fala só aparentemente sem nexo ou sentido. Voltando a Hamlet, mais convincente é uma sua reflexão crítica sobre o ESPECTRO no final do segundo ATO (quando planeja o teatro): “…Mas o espírito que eu vi pode ser o demônio/O demônio pode assumir formas sedutoras./ Aproveitando-se da minha fraqueza e melancolia—/Tem extremo poder sobre almas assim—/Talvez esteja me tentando para me perder/Preciso de provas mais firmes do que uma visão…”. E essa prova viria da observação da reação do novo rei diante da reprodução de seu possível atentado!!! Nem em Curitiba!

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HAMLET DESTRUINDO O LEGADO DO PAI

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Sobre o Espectro:“Tão parecido com o rei, que foi e é a causa dessa guerra”

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Antes do início toda a ação, o rei Hamlet derrotara um certo FORTINBRÁS, rei da Noruega, tomando suas posses. Agora, seu filho, o Príncipe Fortinbrás (este sim, um homem de ação) estaria reunindo um exército para enfrentar o novo rei da Dinamarca (tio de Hamlet). Assim, e ao final da peça, enquanto as muitas e desastradas tramas e venenos do castelo de Hamlet vão tragando quase todos para as profundezas, o jovem Fortinbrás vem se aproximando preparado para lutar. Ele não sabe que encontrará um reino acéfalo e todos mortos: “O que são esses barulhos guerreiros?” (Hamlet, já moribundo e diante de disparos fora da cena); “O jovem Fortinbrás chegou vitorioso da Polônia!” (Osric); “Profetizo que a eleição recairá em Fortinbrás/Ele tem meu voto agonizante” (Hamlet morrendo). Por fim, o homem de ação diz: “Tenho neste reino alguns direitos jamais esquecidos/Que a ocasião propícia me obriga a reivindicar” (esse “alguns”, aliás, implica cuidado com os demais). E essa foi uma frase que HAMLET nunca conseguiu dizer. Afinal, era ou não filho do rei morto? No fim das contas, o príncipe preterido conseguiu destruir tudo o que seu pai deixara. E o ESPECTRO…não fez mais qualquer aparição. As coisas podres do reino da Dinamarca eram muito anteriores à morte do rei Hamlet. Há muitos caminhos tortuosos e não esclarecidos nessa tragédia e alguns parecem ter envolvido até seu autor.

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*Em diálogo com o coveiro, depois de encontrar a caveira do antigo Bobo da Corte enterrado há 23 anos, Hamlet diz tê-lo conhecido e dele se lembrar bem…e com carinho enorme.

**Engana-se redondamente quem procurar nas obras teatrais do bardo o “finamente acabado” como nos belos seus sonetos. Sua grandeza reside mais no transbordamento e vitalidade. É a tese de Stendhal (“Shakespeare e Racine”) quando compara a obra do bardo com a submissão à forma (tornada fôrma) em Racine. E foi baseado nisso que julgo ter desmascarado a “especialista em Shakespeare”, Sra B. Heliodora. Ver em: http://www.ipub.ufrj.br/cultura/sem-categoria/b-heliodora-um-espectro-rondando-a-vida-teatral-do-rio

Já em Shakespeare, o que mais impressionou Stendhal foram a força da imaginação e a liberdade conseguida na ação. Enquanto, em Racine, tudo era comedido, com “medidas justas” e atitudes visando um falso ideal, no “bárbaro” bardo inglês havia a explosão de vitalidade em toda a sua brutalidade e grandeza. 

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