Arte e Cultura

IDEAL ASCÉTICO E O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO-III

(De como a “descoberta do Brasil” lançou novos ares sobre a EUROPA)

Márcio Amaral, vice-diretor IPUB

………(CONTINUAÇÃO)

“A região é muito agradável. O clima é temperado a ponto de…raramente se encontrar um enfermo…Nunca viram um epilético, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. A região se estende à beira mar; é limitada por platôs e altas montanhas…Têm peixe e carne em abundância…”(“OS CANIBAIS“, Ensaio de M. de Montaigne, sobre os índios da Guanabara).

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E qual seria a origem do tal “IDEAL ASCÉTICO” que tanto mal tem trazido à humanidade, especialmente por ser apresentado como um objetivo nobre a ser alcançado por todos? Nasceria: “…do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera…um artifício para a preservação da própria vida…”. Teria sido desenvolvido pelo “homem domesticado, como resposta à sua “..condição doentia…na luta contra o desgosto da vida, a exaustão, o desejo do fim” (Gen. da Moral, III-13). Eis uma formulação absolutamente convincente confirmada pela condição doentia e sofredora de praticamente todos os santos e da maioria dos sacerdotes. Seus esforços para transformar essas dificuldades, bloqueios e limitações em um VALOR, de maneira a dominar os povos à sua volta, seriam absolutamente legítimos. Sendo assim, a pergunta passaria a ser: mediante que “capacidades muito especiais” têm esses seres degenerados e doentios conseguido INVERTER a situação, de forma a conseguir tanto poder junto aos povos?

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TENTANDO ENTENDER O SALTO “QUASE MORTAL”

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É com o traseiro que sentamos no mais elevado do tronos” (Ensaios)

Grosso modo diria: fazendo com que essas pessoas se envergonhassem delas mesmas, de suas inclinações e apetites. Através de que meios? A partir de uma falsa espiritualização: voltando “baterias” contra o corpo humano; atacando frontalmente nossa origem animal; associando o SEXO à vergonha e à SUJEIRA. Esse problema do uso da “HIGIENE” como instrumento de PODER, provocando um sentimento de VERGONHA (de si mesmo) é tão sério que quase TODOS nós, com medo de julgamentos, evitamos discussões a respeito. Significativamente, aquele bordão repetido por uma personagem cômica da TV: “Sou pobre, MAS sou limpinha!” traz TODAS as marcas do mal que os “FARISEUS e mestres da LEI” (Mateus-15*) conseguiram incutir na cabeça das pessoas. Até nisso o “Homem da Galileia”, com sua intuição rápida, direta e profunda defendeu sua gente: “Sujo é o que sai da boca dos homens…comer sem lavar as mãos não torna ninguém impuro.“* . Não por acaso, as “igrejas” que pululam por aí fazem em seus cultos apologia e descrição do como “se limpar”. NÃO! Eles não querem ajudar a ninguém ensinado higiene, apenas reafirmar aos seus fiéis: “Vocês são intrinsecamente sujos e só nós os podemos salvar”. SIM! A HIGIENE pode ser um VALOR, caso respeite os tempos e os prazeres das pessoas (especialmente das crianças), mas se tornou um látego abominável nas costas da gente simples do povo…e de quase todas as crianças. Além disso, seria necessário falar dos males causados pelas mentes HIGIENISTAS?

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ASCÉTICO-ASSÉPTICO: INODORO, INSÍPIDO…ESTÉRIL

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“A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas…vejam o estado natural em que vivem os povos que não conhecem leis artificiais” (Montaigne 3-XIII)

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O ideal ascético nasce conjuminado (e essa palavra horrível aí vai de propósito) com um certo “ideal asséptico”: inodoro, insípido, estéril e…ESTERILIZANTE! E para que fique bem clara a HIPOCRISIA acima assinalada: NUNCA houve SUJEIRA tão generalizada e intensa quanto a provocada pelos próprios detentores dos poderes; SEMPRE em função do acúmulo e CONCENTRAÇÃO de riquezas. Só para dar 3 exemplos: 1-durante a I. Média, com o seu FEUDALISMO, os camponeses viviam junto com seus animais com eles compartilhando quase tudo (W. Durant); 2- nos primórdios da R. Industrial a sujeira promovida pelo capitães de indústria entre os operários de Manchester ficou bem conhecida nos relatos de F. Engels; 3-em 1858, um “GRANDE FEDOR” tomou toda Londres e o Tâmisa, em função dos muitos absurdos cometidos pelo CAPITAL INDUSTRIAL. Em oposição a tudo isso, os homens e mulheres que foram encontrados vivendo aqui no Brasil (Rio de Janeiro, sob domínio francês, 1560)—Montaigne conversou com alguns índios que foram levados à França—eram descritos como muito NATURALMENTE zelosos para com sua própria higiene e dos locais onde habitavam.

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MONTAIGNE: FILÓSOFO “POR ACASO”**..GRAÇAS A DEUS!

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No texto anterior, discuti a afirmação de Nietzsche de que a FILOSOFIA nascera necessariamente associada ao ideal ascético. É uma afirmação impossível de confirmar ou refutar, embora mais do que razoável; convincente mesmo. Isso não tem qualquer consequência objetiva. Há outra (dela decorrente e com muitas consequências), porém, que podemos refutar aqui e de imediato: a de que a formação de UM filósofo implicaria, também necessariamente, um abraçar daquele ideal com suas 3 palavras quase fatais: POBREZA, HUMILDADE E CASTIDADE. Montaigne é a sua negação (embora fosse muito humilde):

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“São ou enfermo satisfaço meus apetites. Respeito os meus desejos e as minhas inclinações: não gosto de curar o mal com o mal…Ter cólicas e ser forçado a não comer ostras são dois males em vez de um…Se temos que enfrentar certos aborrecimentos, que seja depois de atender a um prazer. Os homens veem a realidade ao avesso: imaginam que só o desagradável pode ser útil…Tudo o que me repugna sei que é prejudicial e nada que me apetece me faz mal. Nenhum ato inteiramente agradável jamais provocou algum mal ao meu organismo; daí ter feito, não raro, de meu prazer a minha receita” (Ensaios: 3-XIII).

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E quantos filósofos ascéticos se contorceram por essas palavras, especialmente o muito ascético Pascal que passou a vida brigando com o “fantasma” de Montaigne! E com que gosto este discutiu sua própria SEXUALIDADE desde as suas primeiras experiências. Quem “resolveu” o impasse para os filósofos ascéticos foi Hegel, ao dizer que Montaigne fazia antropologia social e não filosofia.

………………………….continua….

*MATEUS-15: “Fariseus e mestres da Lei vieram de Jerusalém para falar com Jesus e lhe perguntaram: – Por que é que os seus discípulos comem sem lavar as mãos, desobedecendo ensinamentos que recebemos dos antigos? Jesus: -…Hipócritas! Isaías estava certo quando disse…’o seu coração está longe de mim’…..AOS DISCÍPULOS: ‘Não é o que entra pela boca que faz com que alguém fique impuro. Pelo contrário, o que sai da boca é que pode tornar a pessoa impura (horrorizando os fariseus). O que sai da boca vem do coração. É isso que faz com que a pessoa fique impura. Porque é do coração que vêm os maus pensamentos…Mas comer sem lavar as mãos não torna ninguém impuro”.

**É uma afirmação do próprio em um de seus “ENSAIOS” (1-XII). Há que assinalar seu conhecimento profundo de toda a poesia até então cujas citações entremeiam seus textos. Mais do que isso, a POESIA serviu como uma espécie de “Fio de Ariadne” na sua entrada nos labirintos da sua própria mente e dos demais: “A atenção que, de há muito, aplico em me analisar habilita-me a avaliar os outros com algum discernimento. De poucas coisas falo com mais êxito e competência” (3-XIII).

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