Arte e Cultura

NIETZSCHE E O IDEAL ASCÉTICO: CRITICADO E NUNCA SUPERADO-II

(De como a humanidade precisa se libertar da filosofia alemã)

Márcio Amaral, vice diretor IPUB

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NOTA: O pensador costuma ser acusado de pernóstico, arrogante, etc. Há nisso uma verdade, especialmente a partir de suas últimas obras quando, totalmente isolado do mundo, alimentava-se apenas da certeza inabalável de um reconhecimento futuro. Mas lá, nas suas “cordas” mais profundas, tocava outra certeza: a da nossa pequenez perante algo muito maior: seja o UNIVERSO incompreensível; a natureza; a própria história da humanidade por um lado, ou, por outro, uma Vontade maior, para aqueles que creem. E onde isso mais aparece? Nos títulos e subtítulos de suas obras: “PARA A GENEALOGIA DA MORAL”; “Prelúdio para uma Filosofia do Futuro” (“Além do Bem e do Mal”); “A RELHA DO ARADO”   (título original de AURORA). A rigor, a “GENEALOGIA DA MORAL” propriamente dita ainda está por se aprofundar.
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O IDEAL ASCÉTICO—com suas 3 palavras essenciais: pobreza, humildade e castidade (Terceira Dissertação -VIII)—encontra-se no centro da VIDA e da OBRA de Nietzsche. Não somente por ter sido seu pai um pastor luterano, mas também por ele mesmo ter se preparado (na infância) para a mesma atividade. É tema primordial em várias de suas obras, mas objeto específico de “Para a Genealogia…”. Aqueles traços ditos ascéticos eram tão visceralmente ligados às suas disposições fundamentais que, na infância, era chamado “O PASTORZINHO”. Além disso, pouco antes do seu colapso (na Itália), a gente do povo chamou-o “Il Santo”. E como ele dissecou, atacou e criticou aquele mesmo ideal! O que vou tentar demonstrar, entretanto, é que, nesse caso pelo menos, o “DECIFRA-ME OU TE DEVORO” não funcionou; até porque ele como que fora já “devorado” havia muito. Por isso mesmo, o que faz ali é, em verdade, uma “AUTOVIVISSECÇÃO”: dissecção de um animal vivo, como se costumavam fazer com sapos (e até mesmo homens, durante a INQUISIÇÃO). Estou convencido, porém que, para ser efetiva, essa crítica havia que se dar a partir de dentro do processo e exercida por uma de suas VÍTIMAS. Muito significativamente, escreveu Nietzsche não perdoar a Igreja Católica pelo que fizera com PASCAL*, outra VÍTIMA do ascetismo mais extremo.
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SERIA O ASCETISMO IMPRESCINDÍVEL À FILOSOFIA?
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O maior desafio de um pensador é ser percebido sempre como um CONTEMPORÂNEO. Poucos o conseguiram tanto quanto Montaigne…e Nietzsche, é claro.

Uma das teses principais de “Para a Genealogia…” é a necessidade que a filosofia teria tido do ASCETISMO na sua própria origem e desenvolvimento: “Pode-se dizer que apenas nas andadeiras desse IDEAL a filosofia aprendeu a dar seus primeiros passinhos sobre a terra…”. É uma afirmação muito perigosa e nisso talvez exista uma confissão da sua própria certeza de que duvidava de poder dele escapar. Essa é uma verdade para a filosofia alemã (a partir de Kant), mas há muitos exemplos contrários à afirmação*. No mais, a confissão vem logo adiante: o sacerdote ascético serviu…como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar… Isto mudou realmente? O colorido e perigoso bicho alado, o “espírito” que essa lagarta abrigava, foi afinal despido de seu hábito e solto na luz, graças a um mundo mais ensolarado, mais cálido e luminoso?”(3-X). Como negar ser essa pergunta autodirigida? Quem quiser compreender Nietzsche somente através de suas ideias; prisioneiro da sua poesia e beleza, apenas roçará a tragédia entranhada na sua filosofia. Estava há 2 anos do “raio” que cairia sobre sua única vida e não podemos dizer que sua filosofia o tenha ajudado, nesse sentido pelo menos. A humanidade agradece, pois havia ainda muitos achados fundamentais a serem feitos. Não era mais possível afastar aquele cálice (ele até assinou sua última carta “O CRUCIFICADO”), mas nós não precisamos beber eternamente daquele mesmo vinho; não somos alemães e não queremos saber de ASCETISMO. O outro risco é o falso DILEMA com que os “ascéticos” amedrontam seus seguidores: sair dele implicaria cair em “PROMISCUIDADE e PERDIÇÃO”: “Vade Retro Satana!”

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A SEXUALIDADE E A VOLÚPIA: SUAS GRANDES VÍTIMAS

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Que Nietzsche, a exemplo da maioria dos pensadores alemães, nunca conseguiu lidar bem com o problema é indiscutível. Até aí, nada demais, afinal dificuldades na área são muito frequentes. O problema é que, à maneira daquele que foi a sua primeira grande admiração na filosofia, Schopenhauer, tentou dar àquelas suas dificuldades um “status” de VALOR, como se fossem traços imprescindíveis ao filósofo:“Um filósofo distingue-se por evitar 3 coisas brilhantes e ruidosas: a glória (fama), os príncipes e as mulherestodo artista sabe como o coito tem efeito prejudicial nos estados de grande e grande tensão e preparação espiritual” (3-VIII). Reparem que há um paralelismo quase perfeito entre o IDEAL ASCÉTICO e esse comportamento que seria imprescindível ao FILÓSOFO.  Assim, haveria entre os filósofos uma inevitável e “..peculiar irritação e rancor contra a sensualidade…”.
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O casamento, então, seria algo próximo a uma “sentença de morte” para o filósofo. Depois de listar vários dos mais conhecidos pensadores como eternamente solteiros, tenta explicar a origem daquela aversão: o filósofo, como “…todo animal instintivamente e com uma finura dos sentidos que está “acima da razão”, tem horror a toda espécie de intrusões e obstáculos que poderiam colocar-se em seu caminho para o ‘optimum'”. O exemplo que assinala como contrário à sua tese, Sócrates, acaba por ser desqualificado, pois teria se “casado por ironia”. Um filósofo casado faria parte na comédia** (ou “é coisa de comédia” em outra tradução). Muito significativamente, esqueceu-se ele de um dos filósofos que muito apreciava: MICHEL DE MONTAIGNE (1533- 1592) que, além de ser casado e ter tido 6 filhos (somente uma viveu até a idade adulta), participava ativamente da vida de sua cidade e país, chegando a ser prefeito de Bordeaux, batendo-se pela tolerância religiosa em período de grandes perseguições. E que coragem teve aquele francês para defender a VOLÚPIA como um valor e atacar todas as correntes religiosas que teimavam em se voltar contra o corpo humano, através de múltiplos IMPEDIMENTOS e ABSTINÊNCIAS:“…na própria prática da virtude visamos a VOLÚPIA. E agrada-me repetir essa palavra que quase todos pronunciam constrangidos. E se ela significa prazer supremo e extremada satisfação, melhor que se deva à virtude do que a qualquer outra coisa. A volúpia robusta e viril é a mais seriamente voluptuosa. (Montaigne, Ensaio XX-Livro I). De alguma forma, até a apologia da POTÊNCIA estava ali. Logo outros ASCÉTICOS como PASCAL, e principalmente I. Kant, haveriam de se encarregar do esforço de resgatar o ascetismo que Montaigne havia abalado profundamente.
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Esse pobre coitado (apesar da estatura, só dizendo assim mesmo) costumava ter sob a roupa um CILÍCIO pontiagudo (instrumento de auto tortura ainda recomendado pelo “OPUS DEI”) que apertava sobre a própria pele sempre era tomado por algo associado a uma vaidade, jactância ou alegria.

**”…Os filósofos, grandes pelo saber, foram-no ainda mais quando passaram à ação. Assim, aquele geômetra de Siracusa (Arquimedes) que, arrancado à sua vida contemplativa, empregou seu gênio inventivo na defesa de seu país…Cada vez que tiveram de passar da teoria à prática elevaram-se tanto que se diria terem enriquecido prodigiosamente sua alma e coração no estudo das coisas.” (Ensaios, Livro I-XXV, M. Montaigne).

***A primeira forma parece-me bem mais de acordo com as teses do livro (apartamento das coisas dos homens) além de muito mais bela. A citação de Montaigne acima é uma resposta à questão e mostra que há bem mais do que a filosofia alemã a ser estudada

1 Comment

  1. Olá bom dia =)
    Gostei muito da forma como o texto foi construído, colocando como prática o conceito de Nietzche para analisar coisas “mundanas”. Por ai, normalmente, vemos textos que falam dos conceitos da filosofia de Nietzche em torno de um tom teórico e analítico sem porém, falar de algo usando dela como conceito vida/experiência; falam de Nietzche, mas não como Nietzche – e aqui encontramos as duas coisas. =) Obrigado por compartilhar sua visão!
    Aproveito e deixo em baixo um texto de nosso blog que opera da forma como este, porém partindo de temas diferentes. O pensamento de Nietzche aplicado a saúde e autoconhecimento.
    https://www.espacokirom.com.br/post/icaros-e-mirantes

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