Arte e Cultura

NIETZSCHE: UMA PRISÃO SEM SAÍDA, E EM TORNO DA MORAL-I

(Sem sintonia com a gente simples não há mesmo saída)

Márcio Amaral, vice diretor IPUB-UFRJ

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Não é muito fácil criticar aquele pensador a quem mais se deve. A releitura de “Para a Genealogia da Moral”, entretanto, não mais me permite calar sobre a enorme contradição ali contida, da qual resultou, aliás, um dos seus conceitos mais mal compreendidos: o “Übermensch” (“Além do homem” ou “Sobrehumano”). Era um “salto (quase) mortal” tentando escapar da “prisão” assinalada. Sua péssima tradução para “super-homem” não deixou de ser um prejuízo. Como sempre, e mesmo em seus caminhos mais duvidosos (como também em relação ao “ETERNO RETORNO”*), o resultado foi sempre rico e poético. Pensando sobre sua situação de VIDA (o que mais interessa, sempre), como resolver o drama de se sentir espremido entre: 1- um amor pelas pessoas em geral (evidente em diversos pontos de sua obra); 2- uma necessidade de distinção pessoal insuperável; 3- a perda do papel gerador de cultura (sempre popular, por definição) pela gente simples de seu povo (resultando em uma massificação generalizada e aversiva); 4- uma admiração pelos heróis homéricos; 5- nenhuma referência viva em quem se apoiar; 6- sua própria crítica amarga à nobreza (com sua falsa distinção reduzida a maneirismos) e aos Capitães de Indústria (grandes promotores daquela mesma massificação)?

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Diante de tudo isso, a única “solução” (ao alcance de um gênio à beira da “dissolução”) só poderia mesmo vir sob a forma de um CHAMAMENTO pelo futuro. Somente de lá, talvez até muito para além da sua própria vida, poderia vir alguma salvação: ou o suficiente para viver mais uns pouco anos. SIM! Foi esse FUTURO imaginado como um possibilidade (não dele mesmo pessoalmente, mas de uma humanidade imaginada) que o alimentou por mais dois anos depois de escrever:

“Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho e inseguro de si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem do grande amor e do grande desprezo; o espírito criador cuja força impulsora afastará toda transcendência e toda insignificância; cuja solidão será mal compreendida pelo povo, como se fosse fuga da realidade – quando será apenas a sua imersão, absorção, penetração na realidade, para que, ao retomar à luz do dia, possa trazer a redenção dessa realidade e da maldição que o ideal existente sobre ela lançou. Esse homem do futuro nos salvará não só desse ideal, como daquilo quedele forçosamente deriva: o grande nojo, a vontade do nada, do niilismo. Esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada -ele tem que vir um dia”.(Segunda Dissertação, XXIV, trad. P. Cesar de Souza).

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De alguma forma, Nietzsche esteve com que “enterrado” (ou entregue aos “eruditos“, o que representa quase a mesma coisa) por quase um século! Nunca também, ouso dizer, um pensador pareceu tão accessível à juventude de uma época, como se vê nos dias que correm e entre nós; até mesmo à (ainda) não muito letrada. Alguns estereótipos o facilitaram? Sem dúvida. O estudo da evolução do pensamento precisa se dar assim mesmo. Faculdades de Filosofia não formam filósofos; não se trata de uma formação técnica cheia de pré requisitos a serem preenchidos. Que o saber se vá ampliando e depurando no próprio caminho!

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NOBRE POLACO? O PIOR MOMENTO

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Se tivesse que apontar o pior momento do filósofo—não na sua obra, mas na vida—diria que foi sua hipótese (definitivamente não confirmada) de descender da nobreza polaca. Fazia parte de sua aversão aos próprios alemães, pois esses tratavam os poloneses como inferiores. Mas aí encontramos** o fio da meada para o entendimento da “PRISÃO” assinalada: a necessidade de diferenciação (associado à nobreza) em oposição a tudo o que é “plebeu, vulgar e baixo”. Nietzsche estava como que encurralado internamente entre duas vertentes opostas: de um lado, sua VIDA muito simples e no limite de seus recursos; um andarilho pousando em pensões um tanto suspeitas; vivendo de uma pensão da Universidade da Basileia, pagando pela publicação de seus livros, sem obter qualquer reconhecimento “oficial” e comendo aquilo que era possível. De outro, a necessidade absoluta de DISTINÇÃO. E então, passou a tratar com desprezo tudo que era associado às palavras “DEMOCRACIA e SOCIALISMO”; a atacar os mais fracos e doentes; a desprezar e debochar de todos os esforços por alguma luta coletiva. Tudo isso desembocou no pior momento de sua obra: a defesa do sistema de CASTAS (O ANTICRISTO, seu momento mais próximo ao ódio e ressentimento schopenhauerianos).

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UM FIASCO EM CAMPO DE BATALHA!

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“Descuidados, zombeteiros, violentos, assim nos quer a sabedoria: ela é uma mulher, ela ama somente um guerreiro. Assim falou Zaratustra!”

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Até por bravatas Nietzsche enveredou. Foram muitas as suas louvações aos GUERREIROS, mas servindo como enfermeiro na Guerra Franco-Prussiana literalmente caiu de um cavalo sofrendo uma fratura que o obrigou a retornar. Mas foi também lá que ele concebeu uma das vertentes que seguiu por toda a vida e lhe deu o seu primeiro momento de glória: a afirmação peremptória de que a vitória da Alemanha fora uma derrota da CULTURA e, por isso mesmo, representava um perigo para a humanidade. Tudo isso bem antes dos 30 anos e em meio aos enormes festejos e louvações ao militarismo. Não há um paralelo de tanta independência na história. Foi o seu maior momento em termos de influência direta na vida de seus contemporâneos. O pensador mais louvado da época um (David Strauss, patriota como todos) não mais se ergueu do estrago que argumentação do jovem causou na sua reputação, vindo a falecer logo depois. Nessa “guerra”, Nietzsche era insuperável. Fala-se muito do “NIETZSCHE DO SOL DO MEIO DIA”, mas poucos entendem que: sem entender o “CAMINHANTE E SUA SOMBRA”, ninguém há de se aproximar da riqueza de sua personalidade. Daquele momento em diante formou-se à sua volta um halo de silêncio: contra a agudeza da sua pena somente o silêncio poderia ter algum efeito. E quanta aversão lhe causava a total falta de UNIDADE na cultura alemã: a ALEMANHA não tem uma cultura, embora tenha produzido muitos eruditos, também afirmou! Mas que abismo em relação ao seu próprio povo! O mais profundo em toda a Europa. Suas piores consequência atingiriam o ápice anos depois.

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SEM CULTURA POPULAR: MASSAS AMORFAS E MANIPULAÇÃO

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Estava ali, e na CULTURA, um caminho a seguir para a superação do DILEMA em que Nietzsche se encontrava. Mas, para isso, só encontrando alguma repercussão na sua própria gente, e isso foi impossível. Os esforços para resgatar os mitos alemães protagonizados por Wagner e levados ao extremo entre os nazistas—com seus inúmeros cortejos de pessoas fantasiadas e outras tentativas especialmente por parte de Himmler—são uma prova do vazio cultural a que aquele povo tinha chegado. Nunca o termo “MASSA” (sempre amorfa e manipulável) se aplicou tão bem. Significativamente, a maior peça de propaganda do III Reich se chamou O TRIUNFO DA VONTADE (“Triumph des Willens”, 1935). Fora o triunfo de UMA única vontade (e potência) contra uma população reduzida à total falta de vontade própria (ou potência). Era também uma consequência do mundo industrial e seu inevitável massacre de individualidades. Ao abraçar os ideais das classes dominantes, abrindo mão da riqueza cultural—cuja fonte e manancial se encontra SEMPRE na gente mais simples de todos os povo—essa gente destituída de qualquer orgulho ou amor-próprio ficou à espera de algum FÜEHER que lhes salvasse. Quem sabe resgatariam alguma autoconfiança; tristemente totalmente ligada à “pátria”, essa entidade exterior aos homens e à CULTURA e que tanto mal já causou? Assim, ao falar v fala nesse homem do futuro que “teria que vir um dia…”, redimindo e resgatando, etc., sem estabelecer qualquer ligação com o restante do seu povo—no sentido de um avanço cultural e promoção de autonomia individual—Nietzsche deixou mesmo margem para a conclusão de que HITLER poderia ser esse homem.

……………CONTINUA……..

*O conceito era tão belo quanto impossível. Como houve infinitos outros mundos antes e depois desse (quem sabe até mesmo nesse momento os há?), tudo o que está acontecendo um dia haveria de se repetir, segundo até a lei das probabilidades. Para o mundo físico até se pode considerar, mas

para a nossa muito fluida e mutante organização mental/espiritual/da alma… que engloba outras mentes, almas, etc. seria absolutamente impossível. E se não houver MEMÓRIA, não seremos nós. Era um último esforço em um sonho de imortalidade.

**Já há algum tempo defendo a hipótese de que os grandes artistas, poetas e músicos alemães descendem dos ciganos (texto neste Blog). Ao contrário do que dizem, eram a crianças ciganas as roubadas pelos aldeões. Quase todos os poetas alemães eram muito desadaptados e como cantaram os andarilhos à procura por uma pátria perdida! “Fremd bin ich eigezogen/Fremd zieht ich wieder aus…” (“Estrangeiro aqui cheguei/Estrangeiro daqui me vou) do ciclo “Viagem de Inverno” W.Müller, musicado por F. Schubert.

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