Arte e Cultura

O QUE ESTÃO FAZENDO COM O FORRÓ?!

(OS MUITOS RISCOS DO EROTISMO GROSSEIRO E VULGARIDADE)

Ouvindo a resposta de uma moça a alguém que a convidara a um forró: “Eu não…! Só tem uns caras que vão logo te agarrando, achando que se v. tá lá é porque quer…!”, pensei haver preconceito naquelas palavras. Quando, logo depois, me deparei com um ônibus enorme e preto, em cujas laterais li: “CALCINHA PRETA”! O MELHOR GRUPO DE FORRÓ DO BRASIL, percebi que a moça devia ter muitas razões para dizer o que disse. Outras fontes o confirmaram.

Eu, que sempre associei os vários ritmos que compõem o que se denomina FORRÓ, à sensualidade lírica, ingênua e sutil, fiquei muito preocupado com os seus destinos. Quem sabe não estaria percorrendo o mesmo caminho das marchinhas de carnaval na década de 1960*, quando a grosseria generalizada matou, aparentemente, a sua fonte?! Felizmente, seu patrimônio é tão rico, que haverá de animar infinitas gerações. Já o ambiente e estado de espírito que as gerou…! Quem sabe um dia!?

Os exemplos do mais profundo lirismo que animou os compositores das primeiras canções do  gênero “forró” são difíceis até de enumerar e talvez ainda não nos tenhamos dado conta de sua profundidade. Como necessitamos excessivamente de reconhecimento externo, resolvi dar alguns exemplos de como o lirismo nordestino encontra paralelos em uma das formas mais apreciadas da expressão lírica: o da poesia alemã do período romântico.

Talvez o maior de todos os líricos alemães tenha sido um judeu, Heinrich Heine. Foi exatamente por esse lirismo que sua obra inpirou vários dentre os mais líricos de todos os músicos alemães: F.Schubert, mas principalmente R.Schumann que musicou todo um ciclo de seus pequenos poemas, “Dichterliebe” ou “Os Amores do Poeta“. O primeiro desses poemas se inicia pelo verso que M. Bandeira considerou o mais belo dentre todos em língua alemã: “In wundershöenen Monat May”:

“No mais belo mês de maio/Quando todos os brotos floresciam/Então, no meu coração/Também eclodiu o meu amor/// “No mais belo mês de maio/Quando todos os pássaros cantavam/Lá eu revelei à minha amada/Todo o meu desejo e minha dor”

O amor como um acontecimento totalmente sintonizado com a natureza. Mais do que isso: como uma expressão da natureza.

“Mandacaru quando fulora na seca/É siná que a chuva chega no sertão/Toda menina que enjoa da boneca/É siná de que o amor já chegou no coração…!” (“Xote das Meninas”, L. Gonzaga)

Há alguma diferença temática, mas a mesma íntima ligação entre o amor e os acontecimentos da natureza está lá. Se, nessa canção tudo é humor e ironia fina—“não existe um só remédio em toda a medicina: ela só qué, só pensa em namorá”—em “Assum Preto” (L.Gonzaga e Humberto Teixeira) esses paralelos são de uma tragédia profundamente dolorosa. O cantor se identifica com pássaro que, “talvez por ignorânça ou maldade das pió”, tem os olhos furados “prá ele assim cantar melhó…Assum preto meu cantar/É tão triste como o teu/Também roubaro o meu amor, Ai/Que era a luz dos óios meus…”. C omo é típico dos líricos, tudo transpira um intimismo humilde, cheio de resignação. Em “Asa Branca” (mesma dupla) essa relação com a natureza é o centro do poema. Seria até exaustivo apresentar mais exemplos dessa íntima ligação das pessoas, seu lirismo e amor, com a natureza nordestina.

Dentre as mais líricas das canções nordestinas está a que gira em torno de um “JUAZEIRO” (L. Gonzaga): árvore cuja sombra abrigou e testemunhou um grande amor e que tem, em sua casca, gravados os nomes dos dois amantes. O desolado amante conversa com a árvore debruçada sobre um riacho, parecendo se compadecer da sua dor. Esse é também tema frequente no Renascimento e entre os arcadistas—de um lirismo igualmente extremo, quase doentio—e aparece em “DER LINDENBAUM” (“A Tília”), do ciclo “Viagens de Inverno” (1822) de W. Müller (musicado por F. Schubert). Foi também perto da água corrente (de uma fonte) que a árvore cresceu. Em sua casca estão gravadas muitas frases de um amor já acabado e ali o amante desesperado encontra uma comunicação direta apenas com a árvore que parece lhe dizer, com acento trágico: “Somente aqui comigo você encontrará a paz”.

Igualmente típico do lirismo alemão é o tema do poeta andarilho, um eterno estrangeiro na própria terra onde nasceu:

“Estrangeiro aqui cheguei/Estrangeiro daqui me vou…” (WMüller, “Winterreise“)

“Caminho como um estrangeiro/De terra a terra, desconhecido e sem pátria…”(JGSeidl, “Der Wanderer an den Mond”)

“Sou um estrangeiro acima de tudo…” (S. von Lübeck, “Der Wanderer“)

“Em direção à pátria…/A terra mais distante..”(HHeine, “Wanderlied“)

“Meu pai e minha mãe estão mortos…/Ninguém mais me conhece na minha terra” (JFEichendorff, “Im der Fremde”, “No Estrangeiro”).

Diversas canções nordestinas falam da necessidade/fatalidade de viajar. Muito contrariamente ao que se passou com os poetas alemães, entretanto, para todos os lugares onde vão, levam sua terra dentro do coração e criam, onde quer que estejam, o ambiente nordestino. Todo o nordeste parecia caber “dentro do matulão”! Com isso, aliás, tornaram-se um dos maiores fatores de unidade de nossa cultura e país. Quando da aventura paulista de 1932, segundo a impressão de M. de Andrade, foram esses mesmos nordestinos, lá dentro de SP, aqueles que mais solaparam as forças de desintegração. É no que penso sempre que ouço a “Canção do Viajante” (L. Gonzaga e Herve Cordovil). São os do norte que veem, mantendo a unidade de nossa cultura! “…Guardando recordações/Das terras onde passei,/Andando pelos sertões,/E dos amigos que lá deixei/Chuva e sol/Poeria e calor/Longe de c asa/Sigo o roteiro/Mais uma estação/E a saudade no coração…”

Foram principalmente os cearenses que integraram o que hoje é o Acre. Dirão alguns “O que isso tem a ver com poesia e lirismo?”. Uma das primeiras expedições para garantir aquela integração—resistindo à proverbial atitude dos inglêses de dividir para reinar em função de fazer do Acre uma “zona livre”—foi denominada exatamente “Expedição dos poetas”, pois fora organizada por poetas. Como era de se esperar aconteceram muitas confusões, mas não deixou de ser efetiva.

Está certo que L. Gonzaga houve apenas um! O que se espera é que os novos artistas estejam à sua altura e à altura da sensibilidade de seu povo e região, evitando os apelos do dinheiro e sucesso fáceis. Que não se deixem explorar pelos não artistas! É verdade, também, que gênios como ele pesam sobre os iniciantes. O lirismo do povo nordestino, porém,  continua lá, à espera de cantores, no nível da inspiração sincera de cada um.

*Foi com as marchinhas de carnaval que me dei conta, ainda na infância, intuitivamente e através de um sentimento, dos riscos que a mídia pode representar para a cultura. Vi o surgimento da figura do “catitu”—em analogia a um porco do mato que fuça continuamente—e daquilo que se denominou “catituagem”: “promoção ativa” (com tudo o que isso pode significar) das músicas de carnaval nas rádios e TVs. Em poucos anos, a fonte quase inesgotável secou e os “catitus” foram fuçar outras coisas por aí!

Marcio Amaral

1 Comment

  1. Oi, meu nome é Daniel Berman e eu sou um criador de séries de TV, produtor / diretor, DP, fotógrafo, editor e fundador dos Prémios móvel de fotos.
    Gostar de ler o seu post! Continue fazendo o bem!
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