Temas e Controvérsias

("Não quero ver ninguém de fora/Abre a roda vem brincar" de uma canção popular)

Tentando vencer a perplexidade; convencido de que tudo é passível de investigação científica, mas rogando para não cair em excessos de especulação ou reducionismos, a abordagem desse acontecimento precisa começar pela divisão: 1-investigação psicológico/familiar; 2- possíveis determinantes sociais.

1- Como uma pessoa chega àquela situação.

Limitar o acontecido a uma doença mental não depôe muito favoravelmente em relação à inteligência de quem o faz. As condutas dos assim chamados “loucos” não são aleatórias, apesar de “…a maioria crer que os insensatos perturbam a ordem da Natureza mais do que a seguem” (Spinoza, “Tratado Político”). Chamar o culpado de animal ou “monstro” também não ajuda em nada. Muito a propósito, o que mais chamou a atenção foi o cuidado do atirador para com animais abandonados. Amamos aquilo com o que nos identificamos. Amamos a nós mesmos em nosso amor ao próximo e esses dois sentimentos não são passíveis de separação. O rapaz estava na situação de um cão abandonado, depois da morte de seus donos. Ao que tudo indica, foi sacrificado como um cão raivoso e por um “tiro de misericórdia”. Aquela foi uma história de abandonos.

Há vários outros casos de brutalidade extrema para com seres humanos associada a uma ternura exagerada com animais. Dostoévski, em “Recordações da Casa dos Mortos”, discorre longamente sobre o diretor/torturador que amava seu pequeno cão a ponto de adoecer quando de sua morte. Eva Braum confessou (“A Queda”) maltratar às escondidas a cadela de Hitler, pois sentia ciúmes dos carinhos que ele dedicava ao animal¹. Quase todos precisam de um objeto para “exercitar a ternura”.
Também chamou a atenção, na carta deixada pelo matador, um certo culto à pureza e uma repulsa à sexualidade. Todo culto à pureza tem sua carga de perversidade, pois tenta eliminar nossa origem animal, tema tão caro a quase todas as religiões. Em todo “reformador da humanidade” há um perverso, pois ele parte da não aceitação do ser humano como é. Foi notável, ainda, como os adultos não estavam na “linha de tiro” do atirador. Seu ódio era todo voltado aos adolescentes e a maneira como poupou um menino “mais gordinho” sugere também uma identificação.

Temos ouvido, com uma frequência preocupante, um discurso de ódio e inveja contra adolescentes por parte de professores que se sentem acuados em sala de aula: “…E se um MOLEQUE pichar a sala e a profa fizer com que ele a pinte…os pais ficam enfurecidos…Tb jamais levante a voz com um aluno… o APRENDIZ DE MELIANTE pode estar armado…” (trecho de mensagem de uma “educadora”—na internet— recebido dias antes da matança).

Nossa tese: Os assim chamados “loucos” não vivem fora do mundo e são, ainda mais do que nós (e por definição), influenciados pelos discursos perversos e irresponsáveis de muitos dos considerados “bons cidadãos”. Eles transformam em atos os discursos que muitos repetem de forma inconsequente. “Jack, o Estripador” representou a concretização da perseguição à sexualidade na Inglaterra vitoriana. Até hoje não se conhece a identificação do criminoso. Seu nome é “O Espírito da Época”, também representada na obra clássica: “Dr Jekyil and Mister Hide”². Há poucos meses, um doente mental colocou em prática a retórica republicana nos EUA, matando quase uma dezena em um comício democrata. A origem e a “causa” desses atos não devem ser procuradas na doença mental³. Há nesses atos mais de “hiperrealismo” do que de absurdo.

Para o atirador de Realengo, todo o mal parecia ser representado pelos adolescentes, especialmente pelas moças e, dentre elas, as mais bonitas (a julgar pelas fotos). Muitos têm repetido um discurso parecido contra os adolescentes em geral. Teria ele sofrido “bulling” por parte de outros adolescentes? Sim, mas quando uma profa diz que não tomavam providências, pois estavam mais preocupados com os “bagunceiros”, faz pensar que a tolerância a alguma “bagunça” nas escolas deve ser muito saudável. Ali, pelo menos, a vida pulsa.

Toda boa investigação deve começar pela capacidade de fazer as perguntas mais pertinentes: Algo de parecido teria acontecido na família do rapaz? Seus 5 irmãos teriam ficado enciumados com o “apego excessivo” de sua mãe a ele e o teriam isolado já em casa? Repetimos, na rua, certas “matrizes” de nossa vida em família. Ele teve alguma vantagem nesse apego excessivo, ou ficou como que “aprisionado” pela necessidade da mãe de ter alguém consigo para sempre (um “animalzinho de estimação”)? Como a morte faz sempre a sua parte… Em um bairro onde as pessoas ainda colocam “cadeiras na calçada”, sua casa mais se parecia com um “bunker”. Algo de muito estranho devia acontecer por ali há muito tempo.

Em certa parte da Espanha (“Como Água para Chocolate“), toda filha caçula era obrigada a abdicar de sua própria vida para cuidar dos pais. Ele foi beneficiado ou sofreu as consequências de um amor opressivo? A recusa dos irmãos de criação em reconhecer o corpo é uma consequência do ato bárbaro ou participa diretamente das causas da tragédia? Não será, a não ida de qualquer dos irmãos ao M. Legal para reconhecer o corpo, apenas um último abandono? Pelo menos esta pergunta tem resposta: nada mais é do que o último ato de um drama/tragédia de abandono.

Por fim, na mesma carta da “educadora”, lemos a pergunta vencedora de um certo “Congresso Sobre Vida Sustentável”:
“Todos estão pensando em deixar um planeta melhor para os nossos filhos. Quando vamos pensar em deixar filhos mehores para o nosso planeta!”

Lembram-se dos reformadores da humanidade?! Os mesmos que não gostam dos seres humanos como são?! Esse verniz de virtude esconde a pior das perversões. Se queremos deixar “filhos melhores”, o que vamos fazer com os que estão aí? Eliminá-los? Há que ter mais cuidado com as palavras! Amemos as pessoas como elas são. Quem sabe, assim, terão estímulo para avançar e até nos agradar um pouco?

2- Há determinantes sociais que possam ter influenciado o desfecho? (continua)

¹ Hitler, aliás, foi, antes de tudo, um bom “adestrador de cães”. Boa parte do povo alemão se transformara em uma matilha perigosa. Nunca isso foi tão visível quanto nas grandes manifestações, onde os muito bem adestrados soldados gritavam: “HEIL…HEIL…HEIL..”. A onomatopéia é inconfundível. Seria uma proeza para verdadeiros cães “latir no tempo certo”, já para seres humanos, deveria ser uma vergonha.

²”Alice no País…” é também contemporânea da Rainha Vitória, representada, ao que tudo indica, na “Rainha de Copas”: “Cortem-lhes as cabeças”. Os artistas conseguem sublimar os dramas pessoais e coletivos. Os “loucos” levam-nos à ação.

³Não é boa prática a atribuição de diagnósticos, especialmente o de esquizofrenia, sem a feitura de um exame direto do paciente. Com os dados reunidos, a única certeza que se pode ter é o da presença de um Estado Paranóide, de conteúdo predominantemente místico e de grandeza (em função da presença, ao que tudo indica, de uma missão). Não há registro de alucinações auditivas e, se tivéssemos que levantar uma hipótese nosológica (havendo uma evolução a acompanhar), seria caracterizado, muito provavelmente, um Transt. Delirante Persistente.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ