Temas e Controvérsias

…E OS EIXOS DIAGNÓSTICOS SAÍRAM DOS EIXOS!-I

(RESGATANDO O LEGADO DE JL LOPES¹)
Dentre as grandes novidades da Classificação Norte-americana para os Transtornos Mentais de 1980 (DSMIII), encontram-se seus cinco eixos diagnósticos. Essa, entretanto, era apenas uma aparente novidade. A releitura do livro de Leme Lopes (“As Dimensões do Diagnóstico em Psiquiatria”) tornou claro que os EIXOS (PLANOS segundo sua terminologia) já estavam lá enunciados, e com muita clareza. Um desses princípios, entretanto, perdeu-se completamente e ninguém mais o aplica: seu primeiro eixo destinava-se, principalmente, ao registro da síndrome observada ao exame inicial e não aos transtornos propriamente ditos, como tem sido feito por todos. Somente assim se poderia melhor fundamentar uma hipótese diagnóstica nosológica, a ser ou não confirmada pela observação da evolução. Uma das principais vertentes que levaram ao DSMIII foi exatamente a obrigatorie dade dessa observação da evolução para o estabelecimento de um diagnóstico nosológico. Quando, entretanto, começamos pela aplicação de um desses diagnósticos nosológicos, já no primeiro eixo, comprometemos sua utilidade.
OS EIXOS: COMO FERRAMENTAS NO PROCESSO DIAGNÓSTICO OU PARA O CUMPRIMENTO DE MERA FORMALIDADE?
A julgar pelas suas primeiras páginas, a inspiração inicial para o DSMIII e DSMIII-R  foi usar os EIXOS com a primeira finalidade assinalada. Pode-se ler no capítulo “USE OF THIS MANUAL”:
“AXIS I- Clinical Syndromes
II- Personality Disorders
III- Physical Disorders and conditions…
IV- Severity of Psychosocial Stressors
V- Highest Level of Adaptation (Past Year)”.
Nenhuma dúvida ou ambiguidade! A destinação a ser dada ao primeiro eixo estava completamente clara. A partir do registro apenas de síndromes, tornaram-se evidentes, ainda, outros objetivos dos EIXOS em geral: 1-disciplinar nosso mais valioso instrumento: a capacidade de pensar com método (um enorme papel educativo); 2-deixar bem claros ítens imprescindíveis para a boa investigação, não apenas sobre o transtorno observado, mas também sobre condições de vida recentes e remotas; 3-preparar um registro imprescindível para comparações a posteriori (Eixo V) de maneira a avaliar os possíveis prejuízos deixados pelo Transtorno e/ou terapêutica aplicada (é bom que não esquecer dessa possibilidade).
É bem verdade, que faltava um elemento essencial para complementação dessa finalidade do EIXO I: uma lista de síndromes passíveis de aplicação. Tudo funcionou como no dito popular: “costurou e esqueceu do último nó”. Foi apenas por uma inadvertência, ou havia uma divisão interna dos redatores do Manual, em torno dessa questão? A ambiguidade que ali imperava era óbvia e a “descostura” quase obrigatória. No próprio Manual (e nos Case Books), quando passamos para a aplicação dos eixos a casos clínicos, encontramos apenas a precipitação (já no EIXO I) do diagnóstico dos transtornos. Só para assinalar, JL. Lopes (JLL) teve o cuidado de listar um grupo de síndromes a serem aplicadas, lista essa que, apenas com pequenas modificações, poderia ser utilizada ainda hoje.
Um segundo e bom princípio que norteou ainda a terceira edição do DSM—é impossível fazer um diagnóstico em psiquiatria apenas pela avaliação de um paciente em um “corte transversal”, uma vez que não há uma alta correlação entre sintomatologia/síndrome e entidades nosológicas específicas—levou a várias outras boas consequências. Assim, foram estabelecidos períodos que se deveriam aguardar para confirmar uma hipótese diagnóstica nosológica inicial: 6 meses para as Esquizofrenias e 2 anos para os Transtorno Distímicos, por exemplo. Isso representou um grande golpe na vaidade, arrogância e mistificação que, por muitas décadas, haviam imperado na atribuição de diagnósticos a partir de avaliações muito falhas e conclusões precipitadas. Assim, costumava-se debochar dos nossos critérios dizendo: a melhor maneira para se curar uma esquizofrenia nos EUA, era tomar um avião para a Inglaterra. Lá, o paciente receberia um outro diagnóstico (certamente menos incapacitante).
Mesmo entre nós, cada centro de ensino e/ou assistência tinha seus próprios critérios e até códigos diagnósticos particulares. É bem verdade que, na clínica do dia a dia—contrariamente à pesquisa, que visa obter amostras o mais homogêneas possíveis e, por isso, precisa aplicar critérios rígidos—obedecer à risca aqueles critérios e prazos, não deixa de ser algo caricatural. O bom princípio, entretanto, da observação da evolução e resposta ao tratamento, deve continuar a  brilhar como uma referência para os mais prudentes. Nós mesmos, que poderíamos ser os mais interessados em inflar o poder da semiologia psiquiátrica, uma vez que é área de estudo preferencial, temos que reconhecer as limitações do instrumento, quando usado isoladamente e sem o concurso de outros “eixos de avaliação”.
O melhor exemplo da insuficiência da avaliação psicopatológica momentânea (para o estabelecimento de diagnósticos precisos), é a impossibilidade de diferenciação com clareza entre certos episódios maníacos—especialmente em jovens, quando costuma cursar com grande desorganização do pensamento e conduta—e o início de uma esquizofrenia. Enquanto, para a assim chamada FUGA DE IDÉIAS², poderíamos identificar os “pontos de quebra” (onde novas associações teriam levado ao abandono da idéia principal), na DESAGREGAÇÃO DO PENSAMENTO (típica das Esquizofrenias) haveria uma justaposição (fusões, bloqueios, roubo, subtração) de conteúdos mentais que, desde o seu início, sequer se configurariam em idéias propriamente ditas.

É da índole do discurso, obrigar quem fala (e quem escuta) ao esforço de manter um objetivo final relativamente fixo, de maneira a expressar uma idéia principal (ainda que pequenos “parêntesis” sejam aceitos). Assim, “fixamos” em um futuro, mais ou menos imediato, um ponto onde queremos chegar e “levar” as outras pessoas conosco. No típico pensamento esquizofrênico, esse “ponto de fixação” (futuro e inicial) sequer existiria. A linguagem perderia sua função principal, origem e razão de ser: a comunicação social. As associações mais bizarras (embora não aleatórias) simplesmente tomariam conta de uma mente tornada passiva perante elas.

Durante muito tempo, acreditamos na suficiência de uma boa investigação, e na aplicação de uma semiologia precisa, para identificar, no pensamento dos maníacos, aqueles pontos de abandono da idéia principal (trocando o ponto futuro de chegada por um outro), de maneira a estabelecer um diagnóstico de “PMD” (como era chamada até o final da década de 1970). Quando isso não era possível, a hipótese principal passava a ser esquizofrenia. Quantos erros cometemos! Quantos diagnósticos, feitos criteriosamente e segundo o saber constituído na época, mostraram-se totalmente errados a partir da observação das evoluções dos pacientes! Há um nível de elevação da velocidade³ do pensamento maníaco que impossibilita aquela diferenciação. Nesses casos, somente a observação da evolução (incluindo resposta terapêutica) possibilita o estabelecimento de um diagnóstico nosológico. (Continua…)

¹Este texto, a princípio, visava apenas fazer um registro de um valor que se perdeu na aplicação dos eixos diagnósticos dos DSMs. A releitura do livro de JLL (1954), entretanto obrigou-nos a mudar seu foco. Os norte-americanos já haviam reconhecido ter encontrado alguma inspiração naquele livro. Sua importância será discutida no próximo texto.

²Muito típica das manias e ligada à elevação da velocidade com que as idéias e associações ocorrem e se impôem a um paciente. Essa expressão, porém, não é adequada, pois o que ocorre é um escape da idéia principal e não uma “fuga de idéias”.
³É também inadequado falar de “aceleração do pensamento”, pois isso implicaria que o pensamento apresenta elevação progressiva da velocidade, o que não acontece (Ver neste mesmo blog “Glossário de Expressões e Termos: Controversos, Inapropriados…”).

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ