Temas e Controvérsias

A INVESTIGAÇÃO PSICOLÓGICA NA OBRA DOS GRANDES ESCRITORES

Talvez Nietzsche não tivesse tanta razão quando anunciou ser o primeiro psicólogo da história (“Ecce Homo”).  Com toda certeza, porém, estava certo ao chamar a psicologia de a “Rainha das Ciências”¹ (“Além do Bem e do Mal”). Afinal, considerando que, tudo o que nos interessa no mundo, começa e termina em mentes humanas (individuais ou em grupos), o estudo dessa mesma mente há de ser o culminar de toda investigação científica (a não ser que a consideremos para além da possibilidade de investigação, o que não seria uma atitude muito científica). Antes dele, Stendhal (com sua confissão de um amor sensual em relação à própria mãe e a consequente hostilidade em relação pai), Balzac, Baudelaire, Flaubert e, principalmente, os grandes russos: Gogol, Tolstói e Dostoiévski, haviam penetrado muito profundamente no entendimento no jogo de forças subjacente às condutas humanas².

A grande novidade trazida pelo filósofo foi a percepção de que, antes de mais nada, nessa investigação, há que remover todos os resquícios de prescrição/condenação moral de condutas (“Genealogia da Moral”). Seu raciocínio foi muito simples: em todos os campos do saber, qualquer investigação se inicia pelo recolhimento de dados que, aos poucos, vão sendo reunidos de maneira a formar, por fim, um corpo teórico. Somente em relação ao comportamento humano, tudo se dava de maneira completamente invertida: antes de mais nada, eram estabelecidos códigos de conduta (prescrições), às quais eram associadas as correspondentes punições, no caso de seu não cumprimento. Muito significativamente, a marca maior de todos aqueles escritores citados foi exatamente a não condenação moral de seus personagens: “Se compreendesse, não julgava!” (resposta de um acusado a um juíz que lhe dissera: “Eu o compreendo.”- L.Tolstói “A Cédula Falsa”).

Nesse sentido, se Nietzsche não inaugurou propriamente a investigação psicológica, abriu o caminho, como uma “relha do arado” (primeiro nome do “Aurora”), para aquele que logo criaria os métodos e uma semiologia de investigação psicológica: S. Freud. Não por acaso, aliás, os maiores obstáculos na aceitação desse tipo de investigação esbarravam sempre no mesmo problema: a rigidez moralista das sociedades. Tudo ia muito bem com as considerações sobre o inconsciente e outros conceitos. Quando, porém, começava-se a falar na sexualidade infantil; no desejo pela mãe e ciúmes em relação ao pai, todos os ódios da “sacrossanta moralidade” eram mobilizados de imediato e todos os recursos possíveis mobilizados para fazer calar.

Se a boa literatura implica uma capacidade de penetrar os mais íntimos determinantes da conduta humana, algo parecido é esperado dos críticos, especialmente daqueles que conquistaram (justa ou injustamente) o papel de formadores de valores. Em uma crítica da representação da peça “O Amante” de Harold Pinter (e espalhando muito fel junto com a tinta), disse a senhora B. Heliodora: “…não se compreende por que, depois de ser elogiado por sua elegância, senso de humor, brilho, etc., o marido/amante se apresenta um tanto animalesco, mesmo admitindo que, para ele…o jogo não funcionava mais.” (OGlobo-01/4/2011).
A linearidade nunca foi um bom método para produzir boa arte e, muito menos, para a sua compreensão. Não é preciso sequer conhecer o texto para encontrar, nas próprias palavras da crítica, a compreensão negada: 1-as características elogiadas eram apenas um “fino verniz” recobrindo uma animalidade grosseira, uma vez que quase todo o processo de “educação”, no mundo ocidental, é executado de maneira a privilegiar a hipocrisia, confundindo educação e civilidade com “boas maneiras”, “etiqueta”. Esse jogo prossegue, até que, um dia, alguma verdade mais profunda se impôe e a máscara cai; 2- os elogios funcionam, com muita frequência, como fios invisíveis que vão envolvendo e aprisionando uma pessoa àquilo que uma outra dela quer. Uma revolta, nessas circustâncias, seria não só compreensível, como louvável. Desses contrastes vive o drama.
“…O seu elogio é para mim um cinturão de espinhos…aquele que elogia, a rigor, quer que se lhe dê ainda mais…” (Nietzsche: Zaratustra, “Da virtude amesquinhadora”)
Ninguém está livre de uma avaliação crítica desastrosa ou má palavra. Quando, porém, um crítico paira como um espectro sobre toda a vida teatral de uma cidade, algo de muito errado há.

¹Antes que alguns percam o fiuo de raciocínio e comecem a discutir o que é ou não “Ciência”, bem melhor é falar em uma ATITUDE CIENTÍFICA do que em um substantivo com maiúscula.
²De Shakespeare não ousamos falar muito, mas o filósofo que mais o inspirou, M. de Montaigne (1533-1596), fez da observação de si mesmo o maior instrumento para sua nada vã filosofia.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ